Coluna
Arnaldo Bloch
Arnaldo Bloch Foto: O Globo

O mundo caiu

Como explicar que, num negócio de meio trilhão por ano, jogadores sejam transportados como cargas inanimadas?

Na semana em que 313 deputados puseram em queda livre a classe política brasileira, a tragédia do voo da Chape (cujo clamor estes mesmos deputados usaram para enterrar, na calada da madrugada, anseios públicos em causa própria) embota qualquer análise. Eleva-se uma nuvem de morbidez que ultrapassa as expectativas mais sinceras de quem ainda crê que um fundo de decência possa prevalecer em nossos dias.

A comoção em torno do genocídio da equipe catarinense e dos jornalistas e tripulantes que viajavam no bonde da Lamia é uma comoção de caráter puro, sem (ainda) as tintas de indignação que virão ao debate. Digo “genocídio” como um tipo de hipérbole, sem a intenção de cristalizar culpas concretas, mas de chamar a atenção para um tipo de irresponsabilidade criminosa, de negligência vã, que beira o dolo, presente nos fatos que envolveram a tragédia, e que é muito comum em todas as esferas de atividades no mundo em que vivemos hoje.

Pois não basta concentrar toda a carga nas decisões do piloto ou da companhia aérea de quinta categoria que conduziu as vítimas à morte. Mas sim desviar, um pouco, a reflexão para o tipo de lógica que leva, num negócio de meio trilhão de reais por ano, a se aceitar que jogadores, comissões técnicas e todos que se associam a tais eventos sejam transportados como cargas inanimadas para cumprir, sem razoabilidade, os calendários apertados que permitem que o taxímetro do mundo da bola gire sem escalas, com o máximo de economia e o mínimo de racionalidade.

Não raro, cavalos de corrida ou de concursos equestres têm melhor tratamento que pessoas quando viajam para torneios mundo afora. Classificados como “carga viva” nos veículos que os levam dos aeroportos para os locais de competição, demandam todo cuidado e o mínimo possível de estresse e riscos.

Cavalos não ganham salários. O cuidado com eles existe pois afeta seu desempenho, o bolso de seus proprietários, as bolsas de apostas e os resultados de seus parceiros humanos. Jogadores de futebol têm salários, alguns milionários, outros apenas dignos, num negócio altamente inflacionado que move uma imensa indústria de entretenimento na qual o tempo é sempre escasso. Todos que lidam com esportes no lado do campo, dos vestiários, da convivência com as famílias, sabem que — independentemente da renda do jogador profissional — a questão humana sempre vem por último numa rotina de torneios simultâneos.

Como se o fato de atuarem num esporte glamouroso, no qual celebridades pipocam e para o qual os holofotes estão sempre voltados os tornasse escravos das necessidades dos que colhem o lucro final: as federações e confederações. Ora, se você é um jogador de futebol, do que tem a reclamar? Lionel Messi que o diga: já havia se queixado das aeronaves da Lamia, que transportaram mais de uma vez a seleção da Argentina. O que mostra que a lógica criminosa pode atingir tanto um time mais modesto, estrela em ascensão de Santa Catarina, quanto uma seleção tradicional, com seu status de bicampeã e carregando um dos maiores jogadores de todos os tempos.

Ou seja, a voz de Messi pode ser ouvida na hora de negociar um contrato com o Barça, mas não quando clama por sensatez e pede para não ser tratado como um contêiner, destinado a cumprir uma entrega comercial, que é, ao que parece, aquilo em que se converteu a alma do futebol: um negócio como qualquer outro, sujeito aos imperativos mercantilistas que imperam após tantas idas e vindas na busca por um mundo em que a necessidade de produzir e lucrar se equilibre com o espírito humanista que o próprio futebol, e os esportes em geral, têm por tradição promover e incentivar.

Nisso, parece que, em pleno terceiro milênio, todas as esferas da atividade humana, da política aos esportes, da tecnologia aos negócios, que deveriam se associar ao bem-estar comum, à decência, ao respeito pelo semelhante, à procura de mecanismos para refrear os excessos de ganância, estão contaminadas por uma resistência malsã, em que o discurso não corresponde às ações.

Ou pior: as ações mais torpes começam a corresponder a discursos deslavados, como ocorre, neste momento, nas casas legislativas do Brasil, onde ninguém mais tem vergonha de expor seus motivos na luta pela sobrevivência de um sistema que, há mais de um século, vem virando as costas para os que, com seus impostos, seu trabalho, seu suor, sustentam a máquina dos poderes e, no fim de semana, assistem ao futebol.

É por amor ao futebol (como atividade, arte, espírito), por seus ídolos e suas famílias, por seus símbolos, pela união que promove em torno de uma flâmula, da cultura de um lugar e de suas cores, que o mundo hoje chora a tragédia da Chape, e não por apreço aos que governam o esporte, que, numa análise posterior, devem ser responsabilizados. Não criminalmente, mas através de uma profunda mudança de modelo, pelo que ocorreu e pelo que ainda está prestes a acontecer se a corrida insana para encher o caixa continuar a ter papel exclusivo em seus destinos.

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