Helio Gurovitz

Quantas pessoas cabem na Avenida Paulista?

Quantas pessoas cabem na Avenida Paulista?

HELIO GUROVITZ
22/03/2015 - 10h01 - Atualizado 26/10/2016 15h52

Até a semana passada, a Sabesp, companhia de água paulista, informava diariamente o nível do sistema de abastecimento da Cantareira como um percentual sobre o volume útil, de 982 bilhões de litros. Volume útil é a água que fica acima das comportas de captação. Ao longo da seca, esse volume se esgotou e foi acrescido de duas reservas, conhecidas como “volume morto”, um total de 287,5 bilhões de litros de água situados abaixo da linha das comportas, captados por meio de bombas. Em 17 de março de 2014, incluindo essas duas reservas técnicas, havia 435 bilhões de litros ao todo no sistema. Como elas ainda não eram contadas, a Sabesp divulgava ter apenas 147 bilhões de litros, ou 15% do volume útil. Um ano depois, em 16 de março de 2015, havia algo como 150 bilhões de litros, também 15% do volume útil. Em um ano, portanto, São Paulo perdeu quase 300 bilhões de litros de água – mais que as duas reservas somadas, ou quase um terço da capacidade útil. Mas os percentuais divulgados pela Sabesp e repetidos de forma quase automática na imprensa eram os mesmos, os tais 15%. Até que uma ação do Ministério Público levou a Sabesp a divulgar uma comparação mais sensata, embora ainda imperfeita.

Tomemos outro exemplo. Na gigantesca mobilização popular do último dia 15 contra o governo Dilma Rousseff, a Polícia Militar de São Paulo estimou a multidão reunida na região da Avenida Paulista, no auge do protesto, em 1 milhão de pessoas. A Paulista tem aproximadamente 2,8 quilômetros de extensão e uma largura máxima de 47 metros, numa área total de uns 130.000 metros quadrados, incluindo aí canteiros, pontos de ônibus e trechos em obras. Em multidões concentradas, cientistas contam quatro pessoas por metro quadrado – sete equivalem ao aperto do metrô lotado. A PM informou que, para fazer suas contas, considerou cinco, na Paulista e em ruas adjacentes. Se a avenida estivesse realmente abarrotada em toda a sua extensão, como informou a PM, caberiam nela, no máximo, 650 mil. Para chegar ao milhão, seriam necessários ainda, por essas contas, mais 70.000 metros quadrados – ou mais de meia Paulista também abarrotada. A PM se recusou a divulgar as fotos aéreas com base nas quais fez sua estimativa, por isso é difícil avaliá-la. Há trechos mais abertos, gente chega, gente sai, gente anda. Ao levar isso em conta, o Instituto Datafolha calculou a multidão em 210 mil ao longo do protesto, ou 188 mil no auge. Seus critérios, explicados em seu site, deixam claro como é fácil subestimar ou superestimar a massa. Mas dá para engolir uma discrepância tão grande, de 800 mil pessoas?

LIVRO DA SEMANA Analfabetismo em matemática e suas consequências John Allen Paulos  Nova Fronteira 1988 (esgotado) 142 páginas R$ 37  (edição em inglês) (Foto: Divulgação)

Não se trata de condenar este ou aquele órgão por manipular seus números. Muito menos de reduzir a dimensão espetacular das manifestações contra Dilma, que o próprio governo federal reconheceu. A questão central não é política. É matemática. Como aceitamos – nós, a sociedade brasileira – números de tão baixa qualidade? Como podemos tomar decisões se nem questionamos uma diferença absurda, de 800 mil pessoas? Se toleramos mais de um ano de crise hídrica com percentuais que não deixam claro quão perto estivemos do fundo do poço? A resposta é a incidência assustadora, no Brasil, de um mal que os americanos chamam de “innumeracy”, e nós, na falta de tradução melhor, de “analfabetismo em matemática” – a incapacidade de lidar com números, grandezas, estatísticas e raciocínios triviais. Esse é o tema de um pequeno livro publicado em 1988 pelo matemático John Allen Paulos e até hoje atualíssimo, Analfabetismo em matemática e suas consequências.


Cometer erros de ortografia ou gramática é um embaraço, mas ninguém tem vergonha de dizer que “não tem jeito para números” – nem mesmo intelectuais sofisticados, comentaristas renomados, políticos ou presidentes da República. Pois deveriam ter. Não é à toa que nossas discussões sobre economia, água e energia sejam tão pedestres. Não se trata de problema só nosso. Egípcios estimaram a multidão reunida na Praça Tahrir, na Primavera Árabe, em até 34 milhões de pessoas, quando lá não cabem mais de 250 mil. Nem nações ricas como os Estados Unidos escapam. “Fico angustiado com uma sociedade que depende tão completamente de matemática e ciência e, contudo, parece tão indiferente ao analfabetismo matemático ou científico de tantos cidadãos”, escreve Paulos. Por que o analfabetismo em matemática está tão disseminado? Não é culpa do PT, do PSDB, da “mídia” ou do “sistema”. As razões, diz Paulos, são “educação fraca, bloqueios psicológicos e equívocos românticos sobre a natureza da matemática”. Ninguém precisa de doutorado para compreender absurdos como os descritos acima. Basta matemática básica. Como Paulos mostra com dezenas de exemplos didáticos e divertidos, ela é, além de acessível, essencial. 








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