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Em disco juntos, Passo Torto e Ná Ozzetti aproximam seus caminhos de beleza enviesada

Álbum, ainda sem título, está previsto para julho

Eles e ela. A cantora Ná Ozzetti cercada pelos novos colegas de Passo Torto (a partir do alto à esquerda, em sentido horário) Kiko Dinucci, Romulo Fróes, Marcelo Cabral e Rodrigo Campos
Foto:
Michel Filho
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Eles e ela. A cantora Ná Ozzetti cercada pelos novos colegas de Passo Torto (a partir do alto à esquerda, em sentido horário) Kiko Dinucci, Romulo Fróes, Marcelo Cabral e Rodrigo Campos Foto: Michel Filho /

RIO - Com o timbre doce, mas contundente, Ná Ozzetti canta versos como “O cadáver sob a luz do sol/ Disfarçado entre o matagal”. Minutos depois, ainda no estúdio, Romulo Fróes, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Marcelo Cabral conversam sobre a gravação e a voz da cantora na música.

— Eu cantando “O cadáver” fica meio caricato — comenta Fróes com Ná, entoando um trecho, forçando o efeito grave e cavernoso. — Com você fica triste, mas não caricato.

A fala, dita no fim do último dia de gravação do álbum que une Passo Torto e Ná Ozzetti (representantes nobres de vanguardas paulistanas de épocas distintas), encarna um tanto do espírito do encontro. O terceiro disco do grupo (ainda sem título, com lançamento previsto para julho), ouvido pelo GLOBO, carrega a novidade de ter na voz da cantora um contraponto claro à natureza torta do quarteto — arranjos, cantos e letras enviesados, de uma dureza seca. Mas sem concessões — mesmo porque Ná, em seu trabalho com o Grupo Rumo ou solo, trafega num terreno diferente, mais igualmente gauche . No disco, como resumiu Dinucci num momento em que se discutia se o arranjo de determinada canção não deveria valorizar mais a beleza da voz da cantora, “Ná Ozzetti está no inferno com um monte de demônios devorando-a”.

"NÁ É COMO UM RIO CAUDALOSO"

A parceria teve início em agosto de 2014, quando o Passo Torto recebeu a cantora no Sesc Santo Amaro, num projeto de residência da banda. Mas a aproximação veio bem antes. Para eles, Ná é uma referência. Ela, por sua vez, acompanha Fróes desde o primeiro disco dele. Além disso, Campos já havia aberto um show do Rumo, Dinucci foi um dos convidados de um show de Ná (que gravou uma de suas canções em seu disco “Embalar”) e a cantora vinha frequentando as apresentações do Passo Torto, do Metá Metá e dos trabalhos solo de cada um.

— Foi um impacto conhecer a capacidade de invenção deles — avalia Ná. — Eles têm uma riqueza enorme de referências, que transformam em algo pessoal, que você nunca ouviu antes. É um dos sons de que mais gosto no mundo.

Ná devolve o impacto ao influir profundamente no som da banda, como explica Dinucci:

— Ná vem de uma linhagem, de uma canção falada, que começa com Mário Reis, passa por João Gilberto, Luiz Tatit (seu colega do Rumo) . É um sentido de poder que não tem a ver com pulmão, com técnica. Ela levou o Passo Torto para outros caminhos tortos, mas não como um corpo estranho, nada ali é chocante para ela.

Cabral nota que, enquanto o canto deles fica mais junto dos instrumentos, num registro médio grave, a voz dela se destaca no agudo. Fróes comenta lembrando uma fala de Juçara Marçal (do Metá Metá).

— Ná é como um rio caudaloso, que vai levando tudo. Nós somos os troncos, o junco que ela arrasta.

A chegada de Ná mexeu também com as composições. Não apenas porque é autora da melodia de três delas (“Este homem”, “Bloco torto” e “Onde é que tem”, sobretudo esta última com uma linha melódica estranha à crueza das outras canções da banda), mas também porque músicas como “O homem comum” e “Cinema é melhor” foram feitas com ela em mente:

— Acho o cinema um tema ambicioso, sobre o qual eu nunca escreveria para um de nós cantar — diz Campos. — Ela amplia nosso foco.

Os assuntos, porém, seguem sombrios: um carnaval de bestas (“Bloco torto”); um corpo abandonado no mato (“O cadáver”); uma morte por envenenamento (“Este homem”); um assassinato (“Beth”, dos versos “Beth escurecida/ Dentro de um cinzeiro”); um gato sátiro, que se transformava em homem e “comia as donas em seus leitos matrimoniais” (“Cipó”). Mas se percebe ali um certo humor — sarcástico, subterrâneo.

— A voz é sólida, eu não estou rindo, mas tem humor no disco. Se você quiser, pode rir — diz Rômulo, citando o exagero das imagens de “O cadáver” e “Bloco torto”.

O comentário de Dinucci sobre o gato de “Cipó” dá uma ideia desse humor cínico:

— Já tínhamos o Piu-Piu (“Passarinho esquisito”, do álbum anterior, que traz versos como “Não tem os olhos de papai, mas tem cara de estuprador”) , agora temos o Frajola.

Ná lembra o humor do Rumo, também de caminhos nada óbvios, apesar de menos denso. O paralelo entre o grupo anterior e seu trabalho com o Passo Torto também passa pela cidade.

— Rumo, a carreira solo de Ná, nossos trabalhos, tudo tem a ver com São Paulo. Cantamos a especulação imobiliária, a superpopulação... A cidade tradicionalmente é homenageada se falando mal dela, desde Vanzolini, Adoniran — afirma Dinucci.

Ná completa:

— Não tem momento de contemplação aqui em São Paulo. “Ladeira da memória” diz “Quanta gente/ Com ar aborrecido olhando pro chão/ Pro reflexo dos edifícios e dos carros/ Nas poças d’água”. Ou “Pro bem da cidade”, que conclui: “Acho que vou ter quer dar um jeito nessa cidade/ É pro bem dela/ Já que não vou mudar mesmo, eu vou dar um jeito nela/ É pro bem dela”.

Ná considera a parceria com o Passo Torto, portanto, um reencontro.

— A sensação que tenho é que estou no estado musical em que tenho que estar. Como no Rumo.