Economia

‘Dancin' Days’: Brasil crescia feito a China de hoje, mas o sonho estava prestes a acabar

As agruras da inflação, da desigualdade de renda e da falta de serviços públicos são também personagens da novela de 1978, que começou a ser reprisada este mês

Antonio Fagundes (Cacá) e Sônia Braga (Júlia) vivem um romance cheio de idas e vinda
Foto: Nelson Di Rago / Agência O Globo
Antonio Fagundes (Cacá) e Sônia Braga (Júlia) vivem um romance cheio de idas e vinda Foto: Nelson Di Rago / Agência O Globo

RIO - Era julho de 1978. O Brasil crescia feito a China de hoje, mas o sonho estava prestes a acabar. Em 1979 veio o segundo choque do petróleo, que fez o país quebrar e enfrentar três anos de recessão. Mas a economia era só o pano de fundo. O que frequentava as rodas das conversas eram as meias lurex com sandálias de salto fino de Júlia (Sônia Braga), a heroína da novela 'Dancin' days', de Gilberto Braga, que começou a ser reprisada no canal Viva, da Globo, no início deste mês. Tanto a novela quanto a economia naqueles tempos de ditadura marcaram época.

A moeda era o cruzeiro, já combalido por inflação alta, que rodava perto dos 40% ao ano. Em 1979, a alta de quase 100% no preço mundial do petróleo faz a inflação também praticamente dobrar por aqui, quando finalmente Júlia reencontra seu amor, Cacá (Antônio Fagundes), e conquista a filha, Marisa (Glória Pires). A mazela da inflação aparece na fala da personagem principal logo no início da novela, quando ela sai da cadeia, depois de 11 anos presa por ter atropelado e matado um segurança. Com os classificados na mão, procura um conjugado em Copacabana e percebe o encarecimento dos serviços. Durante o tempo que passou na penitenciária, a inflação foi de 1.270%.

— CR$ 5.500 por um conjugado, tá muito caro.

Hoje, um conjugado em Copacabana pode ser alugado por algo entre R$ 1.100 e R$ 2.500. O valor encontrado por Júlia nos classificados no jornal equivaleria a R$ 1.437,97 hoje, numa inflação acumulada pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) do IBGE de inacreditáveis 71,7 trilhões por cento.

Estes são os números que ficaram para trás. Entre a novela de Gilberto Braga e hoje, o Brasil viveu os piores momentos da inflação, quando ela chegou a mais de 5.000% ao ano, e o melhor deles com a estabilização do Plano Real. Hoje, o IPCA de 6% assusta.

Copacabana, berço do autor e palco da novela, era o lugar dos endinheirados. Yolanda Pratini (Joana Fomm), a irmã má de Júlia que queria afastar Marisa da mãe, morava lá, de frente para o mar. Era o lar também da família tradicional do diplomata Cacá, que tem uma casa no bairro, desejada por especuladores. Diante da atração dos cifrões, a família se divide. Celina (Beatriz Segall), de família de diplomatas, não admite sair da casa construída por seus pais. Quer ir a pé à praia e não se importa com o barulho da rua. Já o marido, o advogado Franklin (Cláudio Corrêa e Castro), quer se mudar para a Barra da Tijuca, na Zona Oeste do Rio. Quer fugir da agitação.

A Barra é um bairro em formação. Os prédios em sequência que vemos hoje ainda estão na planta. E é na planta que Carminha, personagem de Pepita Rodrigues, de uma família típica de classe média, compra um apartamento. Trabalha dia e noite para concretizar o sonho da casa própria. Ganha CR$ 8 mil como professora de ginástica e o aluguel leva 43% do seu salário que seria de R$ 2 mil nos dias de hoje. Ela sofre para pagar as intermediárias, injeções de dinheiro que são pagas durante a construção e equivale a 1,5% do valor do imóvel. Ela é filha de Alberico (Mário Lago), comerciante nostálgico dos tempos em que promovia bailes de debutantes no Copacabana Palace, onde encontra amigos, atrás de recursos para seus negócios mirabolantes.

É nessas tentativas que ele perde CR$ 18.500 numa mesa de pôquer. Naquele momento, a histórica desigualdade de renda brasileira fica explícita nas palavras de Franklin, o ganhador do jogo:

— Em meia hora, o senhor perdeu o que 10% dos trabalhadores não ganham em um mês — diz a Alberico.

Em 1980, o salário dos 10% mais ricos era 47 vezes maior que o dos 10% mais pobres. O regime militar concentrou renda, ao arrochar salários. Em 1960, este abismo social era de 34 vezes. A quantia hoje equivaleria a R$ 4.500.

Telefone era só para privilegiados. A linha se comprava e o custo mensal era alto. Carminha chega a gastar R$ 411, dinheiro de hoje, por mês. O pai Alberico se pendurou no telefone fixo na parede para saber tudo sobre rãs, o seu novo negócio da China. E, na rua, só orelhões. Situação que perdurou até os anos 2000.

Até o Ipea, que errou na pesquisa sobre violência contra mulher, aparece. A "boquinha" de Jofre (Milton Moraes), conseguida pela irmã, é no Ipea. As faltas e os atrasos acabam com a "mamata" no serviço público, numa época que o Estado é gigante.

Perguntado sobre como foi escrever a novela durante a ditadura, quando a economia começa a deixar de ser aliada ao regime, Gilberto Braga diz que nunca pensou neste assunto.

* Colaboraram Maria Fernanda Delmas e Fernando Miragaya