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Elena Ferrante: 'Prefiro me expressar com a escrita, com amplo controle'

Fenômeno internacional, escritora italiana deu entrevista exclusiva ao GLOBO
Violência contida é marca da tetralogia napolitana Foto: Editoria de Arte/André Mello
Violência contida é marca da tetralogia napolitana Foto: Editoria de Arte/André Mello

RIO — Tudo é mistério em torno de Elena Ferrante. Sucesso há mais de 20 anos em seu país, a escritora  italiana é tão notória quanto oculta. Nunca revelou sua real identidade. Não promove seus livros. Jamais recebe prêmios. Concede raras entrevistas (e, se o faz, só fala por e-mail). Quando lançou seu primeiro livro, “L’amore molesto”, em 1991, disse a seu editor: “Já fiz o suficiente por esta história, escrevi-a”. Apesar disso — ou por esse exato motivo —, o enigma de Elena Ferrante se espalhou pelo mundo. E agora chega ao Brasil.

Lançando aqui “A amiga genial” (Biblioteca Azul), primeiro livro de sua tetralogia napolitana, que chega às livrarias no sábado, a autora concordou em falar ao GLOBO em março. As perguntas foram enviadas para sua agente internacional, que as encaminhou para o editor italiano, um dos poucos a conhecer sua identidade. As respostas voltaram seguindo o mesmo protocolo. Com a condição de que só fossem reveladas perto do lançamento do livro. Após um longo período de reclusão total, Elena deu algumas entrevistas à imprensa americana desde o fim de 2014. O que mudou para ela resolver falar? ( Leia a íntegra da entrevista )

— No que posso, participo da vida pública, mas tenho uma opinião negativa do protagonismo e de todas as amplificações e distorções da mídia. Prefiro me expressar com a escrita, um meio de amplo controle — diz a autora. — Quanto às entrevistas, faria tudo o que me pedem se não tivesse medo de resultar chata, repetitiva, e sobretudo se pudesse, como neste caso, escrever eu mesma as respostas. Não confio em minha oralidade, nas palavras improvisadas e, perdoe-me, em como os entrevistadores frequentemente abusam delas, quando as colocam por escrito.

'UMA MENTIRA QUE DIZ VERDADES'

Há muita incerteza sobre o pouco que se sabe da escritora. Ela teria nascido em Nápoles, morado na Grécia, estudado os clássicos gregos e latinos (a “Eneida”, de Virgílio, é uma referência recorrente em “A amiga genial”). Parece que é mulher mesmo, apesar de boatos antigos de que Elena Ferrante fosse pseudônimo do autor italiano Domenico Starnone (que nega de pés juntos). E teria sido mãe. Só uma coisa é certa: ela acredita que, depois de escrito, um romance não precisa de seu autor.

“Sentia que as pessoas com quem convivia podiam, do nada, sair da bondade à fúria. Mas não é esse o ponto. A violência está não só sob os sentimentos maus, mas também sob os bons. Uma história que prescinde da violência é insuficiente e cega”

Elena Ferrante
Escritora

Suspeita-se que a tetralogia tenha viés autobiográfico. “A amiga genial” começa com a protagonista, também Elena, recebendo uma ligação do filho de Lila, sua amiga de toda a vida, dizendo que a mãe desapareceu, aos 66 anos. No armário de casa, nenhum rastro de seus objetos. Mesmo nas fotos de família, a mulher havia recortado sua imagem. Elena, irritadiça, resolve escrever as histórias das duas, que se espelham: enquanto a protagonista é estudiosa, comportada, Lila é transgressora, a “má”. Enquanto a narradora relembra o passado, o mistério do desaparecimento fica em suspenso.

A história, contada de forma fluida, se passa na periferia de Nápoles, logo depois da Segunda Guerra. É difícil resumir a quantidade de temas tratados por Elena Ferrante. Ela fala não só da formação das amigas (que querem ser escritoras), mas também descreve as relações entre vizinhos após a derrocada do fascismo. E a violência — em especial contra mulheres e crianças — tem um papel crucial em sua literatura. A máfia também domina o comércio local. A tensão da narrativa é mantida pelo medo, nunca concretizado, de que a violência possa eclodir a qualquer momento.

— O ambiente no qual cresci era e ainda é violento. Sentia que as pessoas com quem convivia podiam, do nada, sair da bondade à fúria. Mas não é esse o ponto. A violência está não só sob os sentimentos maus, mas também sob os bons. Uma história que prescinde da violência é insuficiente e cega — afirma a autora.

A italiana é dona de frases cortantes. A crítica literária tem visto uma “brutal honestidade” em suas narrativas. E, questiona-se, é claro, se essa honestidade só não é possível devido ao anonimato. Para Elena, um autor não pode ter pudor nem medo.

— Uma boa narrativa é uma mentira que diz verdades que de outra forma são impronunciáveis — diz.

A capa do romance Foto: SYSTEM / Divulgação
A capa do romance Foto: SYSTEM / Divulgação

Quando era jovem, a autora conta ter pensado que, para escrever bem, era preciso escrever como homem. Afinal, muitas das personagens femininas mais icônicas da literatura — como Emma Bovary, Anna Kariênina — foram criadas por homens.

— Graças ao feminismo, descobri a potência das poucas vozes femininas que conseguiram um espaço. Comecei já tarde a estudá-las, e algumas ainda estou estudando. Parecem-me inigualáveis. Gosto de representar mulheres que escrevem sobre si — afirma Elena, destacando que, apesar da influência feminista, costuma jogar fora o que escreveu se sentir que está “traindo” seus personagens ao obedecer a “uma tese”.

Uma das marcas de seu estilo é a narrativa que se alterna entre a tranquilidade e rupturas. A italiana conta que demorou para encontrar seu modo de narrar, mas agora não pode fazer diferente.

— Faz parte de mim. Preciso de um tom lento que crie uma espécie de cobertura. A cobertura, a um certo ponto, vai pelos ares, e é preciso recolhê-la, comprimir o magma que sai, mas sabendo que ela voltará a pular — diz.

Elena Ferrante defende sua invisibilidade como uma forma de lutar contra a “preponderância” do autor em detrimento da obra. Para ela, é claro que a individualidade é importante. Por outro lado, diz, todo ficcionista faz parte de uma inteligência coletiva:

— Não se deve esquecer que todos nós, na nossa unidade/singularidade, somos o ponto de confluência dos outros, os nossos antepassados, os nossos contemporâneos. Somos inteligência acumulada nos grandes depósitos da tradição, e a nossa individualidade se alimenta continuamente, permitindo e discordando, conformando-se e inovando.

SERVIÇO

"A amiga genial"

Autora: Elena Ferrante. Tradutor: Maurício Santana Dias. Editora: Biblioteca Azul. Quanto: R$ 44,90