Patriarcado e crise política

Na votação que aprovou a abertura do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, a multidão de homens brancos que compõem a Câmara dos Deputados mostrou o que move nossa democracia representativa. Em vez de votar sobre a prática de crime de responsabilidade fiscal pela presidenta, deputados votaram pelo desrespeito à laicidade do Estado, pela discriminação a pessoas e famílias fora da heteronorma, pelo autoritarismo saudoso da tortura da ditatura militar. Em meio a tantas afrontas antidemocráticas, não faltou o sexismo da política partidária: estava lá, nos menos de 10% de mulheres deputadas. Estava nas placas pró-impeachment de “Tchau, querida”, que aludiam à presidenta pelo vocativo condescendente usado contra mulheres em espaços de poder. Estava nas vaias à deputada que não foi à votação por estar de licença-maternidade.

Se há dúvidas quanto ao patriarcado que insiste em hostilizar mulheres na política, a grande mídia reforça a mensagem. No dia seguinte ao da votação, uma poderosa revista semanal dedicou manchete de “bela, recatada e “do lar”” a Marcela Temer, companheira de Michel Temer e primeira-dama em potencial. O tom elogioso da matéria contrasta com o dos perfis feitos sobre a presidenta Dilma, descrita como mandona, agressiva e propensa a “surtos de descontrole”, segundo capa recente de outra grande revista. A reação de mulheres em redes sociais veio lembrar que Marcela pode ser o que quiser, mas o patriarcado não determinará quais mulheres são aceitáveis na periferia decorativa dos espaços políticos. A resistência feminista alerta: impeachment não justifica nem nos distrai da misoginia. Com ou sem uma mulher na presidência, participação política igualitária é direito das mulheres.





O problema não é ser bela, recatada e do lar


 

O problema não é ser bela, recatada e do lar

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Universidade e maternidade

No último domingo, a Câmara dos Deputados aprovou a abertura do processo de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff. O critério da votação deveria ter sido se Dilma cometeu crime de responsabilidade. Mas a criatividade parlamentar foi longe, e muitos deputados que votaram pelo impeachment o fizeram em “defesa da família”. Nina Bitencourt e Anya, de cinco anos, são uma família. Nina é estudante de Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e, ao levar a filha para uma aula, foi constrangida por uma professora até se retirar. A professora não se conformava com a presença da criança na sala, e não ouviu os apelos de Nina de que aquela era a única maneira possível de assistir à aula.

Na família de Nina, as tarefas são acumuladas: ela estuda para se mover na pirâmide social, trabalha por um salário e cuida da filha e da casa. Assim como para muitas outras mulheres brasileiras que são mães, o regime do gênero exige de Nina múltiplas jornadas de trabalho, sem garantia de divisão de tarefas com homens da família. O intento de Nina é o do cuidado e da sobrevivência. Quando diferentes jornadas se cruzam no tempo — cuidar de Anya e assistir a uma aula na faculdade, quem sabe explicar a um patrão que adoecimento de criança não respeita horário comercial —, Nina corre risco de exclusão, de ouvir que a universidade e o mundo do trabalho não têm lugar para ela.

Nina nos faz perguntas: “A realidade da minha cidade é a de um município que mais falta vaga em creche pública no Rio Grande do Sul. [...] Qual é a alternativa? Que a mãe falte na aula? Que a mãe largue o curso e fique em casa cuidando dos filhos? A alternativa de vocês é que as mulheres que se tornam mães sejam excluídas da universidade?” Se os nobres deputados dedicados à família quisessem responder a ela, talvez tivessem que repensar leis que refletem a desigualdade do gênero no cuidado de crianças, como as de licença-maternidade e paternidade, ou a obrigatoriedade de creches em universidades. Um passo ousado seria pensar a socialização de meninos para a divisão do trabalho doméstico, o que exigiria debater gênero nas escolas.

Em tempos de crise política, a luta de Nina para ser uma mãe na universidade nos lembra que a defesa da família em uma democracia requer mais do que arroubos retóricos em que família não passa de estratégias de fuga ao tema. Exige reconhecer e combater a desigualdade que oprime mulheres nas famílias.





Excluir crianças da Universidade é excluir mulheres


 

Excluir crianças da Universidade é excluir mulheres

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Proibição de gênero na escola

As más ideias legislativas espalham-se rapidamente. O projeto de amaldiçoar a palavra gênero ganhou força no Congresso Nacional nos debates do Plano Nacional de Educação em 2014, e alcançou câmaras estaduais e seus respectivos planos em 2015. Agora são os vereadores de Teresina que avançam o passo do retrocesso covarde: não é suficiente sumir com o termo nas diretrizes escolares; é preciso proibir que se fale sobre ele. O recém-aprovado projeto de lei municipal n. 20/2016 pretende impedir o uso de qualquer tipo de material, de livros didáticos a filmes, que contenha “manifestação da ideologia de gênero” nas escolas públicas da cidade.

Em uma dessas escolas estuda Nina, uma criança trans de 5 anos. Em pedido de veto ao PL dirigido ao prefeito de Teresina, a mãe de Nina explica o potencial efeito do projeto sobre a filha: “por desconhecimento, você vai matar a vida escolar de um ser humano”. A explicação da mãe é didática, porque o que os vereadores acusam de “ideologia” é conhecimento sobre diversidade de experiências e vivências. Gênero é palavra que ensina que não há destino nem natureza na moral da classificação dos corpos. Ser sexado menino ou menina ao nascer não determina habilidades, afetos, gostos nem formas de viver o próprio corpo. Nina foi recebida no mundo com um nome e um enxoval que a descreviam como menino, mas, à medida que crescia e aprendia a se comunicar, passou a se reconhecer em outro nome, outras roupas, formas diferentes de se expressar. Nina e sua mãe sabem que isso é tema para a escola que respeita direitos e promove cidadania.





Proibir gênero na escola é perverso


 

Proibir gênero na escola é perverso

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