Coluna
Panorama Carioca Carla Rocha rocha@oglobo.com.br

Joga pedra na Geni

O policial militar é a Geni, ele é feito para apanhar, ele é bom de cuspir. Maldito, o PM é alvo de tudo que é nego torto, do mangue e do cais do porto. Em vida, nós o queremos em grupos no patrulhamento ostensivo, mas à noite, meu amigo, melhor não cruzar com um deles numa rua escura. Se é morto por bandidos, restam ao PM as honras militares e as lágrimas da viúva. Se tanto. Pode ser o melhor ser humano do mundo, mas parece que o simples fato de ser policial corrompe suas possibilidades de ser visto como um cidadão de bem. Nós não choramos a morte de um PM, as ONGs de direitos humanos não se levantam em defesa de um tira. É uma alma sem luz, que sobe aos céus ou desce ao inferno — se a mítica popular prevalecer é quase certo que desça — sem um pesar ou uma oração. Mas não esqueçam que a Geni vive numa cidade de horror e iniquidade.

Não estou aqui para defender policial. Como jornalista, fiz nos últimos anos inúmeras denúncias contra maus policiais, um sem-número deles ligados ao jogo do bicho, à prostituição, a grupos de extermínio. Só para citar alguns crimes a que eles historicamente se associam, porque não há aqui tempo ou espaço hábil para me estender sobre o Código Penal inteiro. Mas nunca perdi a perspectiva de que ser policial, na acepção mais pura da profissão, é uma grande responsabilidade que pesa sobre servidores mal pagos, maltratados e malvistos. E nenhum zepelim gigante virá salvá-los — como também não virá nos salvar.

Esta semana, dois PMs foram executados em 24 horas. O corpo de um deles, de 23 anos, foi achado com sinais de tortura na Avenida Brasil. Sofrer por isso hoje, nestes tempos de cólera, é quase inaceitável. Outros vão defender que tecnicamente seria um desperdício de emoção porque, ao escolherem ser policiais, eles assumiram o risco de morrer. A morte seria um vaticínio, que, para policiais, quase sempre chegaria mais cedo.

Os números, frios números, mostram que, este ano, 17 policiais militares foram mortos em serviço e 85 quando estavam de folga. No último balanço, a conta era de que 256 policiais haviam sido baleados. Assim como a frieza das estatísticas, também podemos fazer uma análise despersonalizada, ignorando as questões humanísticas inerentes à perda de uma vida, e nos ater apenas ao tanto que os assassinatos de agentes da lei podem nos ameaçar enquanto sociedade. O assassinato de um policial, independentemente das qualidades humanas dele, é uma ação contra o Estado. O Estado que, ao contrário do que muitos pensam, não é uma entidade abstrata. O Estado somos nós.

Nos anos 1960, depois que a máfia italiana matou sete policiais e alguns militares com a explosão de um carro-bomba, a polícia prendeu mais de 200 mafiosos, e a Cosa Nostra deixou de existir na região de Palermo. Não foi preciso haver choro, vela, faixas, passeatas ou ONGs de direitos humanos.

A nós, ao Estado, cabe dar uma resposta. A culpa pessoal dos maus policiais é coisa para ser discutida por eles em confessionários ou no além, se houver vida após a morte. A nossa culpa, ou melhor, a culpa das instituições, com suas correições falhas, que estimulam a impunidade, essa sim pode ser discutida em busca de uma saída para se depurar a corporação, aumentar a autoestima de policiais e melhorar a imagem deles perante a população. Numa polícia confiável e eficiente, talvez morram menos policiais. Uma tese é que, com a redução do número de desviados, também se reduz o número de executados, em geral caçados por sócios bandidos quando eles perdem o interesse pelos seus serviços. Ao mesmo tempo, uma ética mais sólida é como uma barreira de proteção para tiras honestos não serem vistos como possíveis delatores que devem ser expurgados pelos próprios pares ou pelo crime organizado.

Já fomos todos Amarildos, quando da execução do ajudante de pedreiro dentro da UPP da Rocinha, a propósito um dos movimentos mais comoventes que já vi nascer de uma catarse coletiva. Até brasileiros no exterior postaram suas fotos com camisas da campanha em redes sociais. Mesmo com mudanças profundas na polícia e na forma como a vemos, tenho clareza de que dificilmente adotaríamos um dia a causa de policiais assassinados, um “Somos todos PMs”. Mas uma refundação da PM, em outras bases de valores, daria ao ataque a um servidor da segurança pública dimensão de gravidade que hoje não tem. É é melhor que seja assim, antes que sejamos todos Genis.

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