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Álvaro Pereira Júnior

Marina é Califórnia

Em mundo pós-ideológico, o capitalismo bonzinho, cordeiro e leão amigos, o céu sempre azul, a fofura

Na grelha, um hambúrguer de tofu. Conversas variadas: sobre meio ambiente, o valor calórico e nutricional dos alimentos, as últimas "revoluções" tecnológicas, a defesa das minorias. Quase ninguém bebe, pega mal. Estamos em um churrasco cheio de jovens cientistas na região de San Francisco, Califórnia.

No palco, os escoceses do Belle and Sebastian. A banda pratica um rock fofo, tocado e cantado com suavidade. A plateia, embevecida, assiste a tudo em suas poltronas. Só alguns se levantam e outros, mais peraltas ainda, tentam dançar no corredor, que ousadia! Mas logo sossegam, são as regras de segurança. Estamos em um show em San Francisco.

Para os participantes do churrasco e para os fãs do Belle and Sebastian, o mundo deve ser um lugar onde o cordeiro é amigo do leão, onde todos lutam pela harmonia e pelo amor, e onde a filantropia e a boa vontade vão resolver todos os problemas da Terra.

Nesse pedaço da Califórnia, tudo é fofo. Em uma rede de sorveterias, os produtos são orgânicos e sustentáveis; os sabores têm nomes engraçadinhos; os balconistas sorriem o tempo todo, saltitantes.

As seguradoras de carro são fofas! Fazem propagandas nas rádios públicas e têm nomes como "Progressive". Uma poderosa firma de investimentos, a maior com sede em San Francisco, baseia todo seu marketing na doçura --até o fundador, de nome Charles, faz questão de ser chamado pelo apelido, "Chuck".

Os bancos são fofos também! A lei americana fortalece instituições bancárias regionais, e nessa região sobrevivem muito bem bancos de bairro, de nomes poéticos, como o Mechanics Bank, o "banco dos mecânicos".

É uma espécie de mundo à parte, plácido, autossustentável, pós-ideológico, onde, hoje, até gigantes como Facebook e Google cultivam a imagem de campeões da fofura, da democracia e da liberdade. Nesse universo idílico de manhãs eternamente azuis, não há dilemas: basta ser a favor do bem, e basta ser contra o mal.

Admito que não sou analista político, longe disso, e reconheço que este meu recorte da Califórnia é muito específico --refere-se à parcela do mundo acadêmico que conheci, na virada do século 20 para o 21, quando andei por lá.

Mas, feitas essas ressalvas, me parece haver um paralelo claro entre esse contexto de capitalismo "bonzinho" californiano e o tudo o que gira em torno da candidata Marina Silva.

Como tem sido noticiado, surgem muito próximos a Marina a herdeira paz e amor de um grande banco, o multibilionário defensor da natureza e outros insatisfeitos vindos de vários pontos do espectro social.

Claro, seria injusto atacar Marina por receber apoio de magnatas. Todos os grandes partidos vivem disso: doações de bancos, empreiteiras, mineradoras e outras firmas poderosas.

Mas talvez o caso dela tenha chamado tanto a atenção porque, dos partidos tradicionais, os que competem com a pós-política de Marina, desses não se espera nada mesmo. Lama e mensalões: tudo "business as usual".

Já essa associação tão próxima de Marina --a ambientalista vinda da militância de esquerda-- com representantes do chamado "grande capital" pode parecer estranha para quem não acompanha política de perto e conhece, de Marina, somente sua postura de Madre Teresa de Calcutá.

Mas, é bom lembrar, nem Madre Teresa esteve acima de ataques. O jornalista inglês Christopher Hitchens (1949-2011) dedicou um livro-panfleto, "The Missionary Position", a atacar o mito da freira bondosa. Na visão de Hitchens, Madre Teresa, com as doações milionárias recebidas, poderia perfeitamente construir hospitais e asilos de alta qualidade para os pobres de que cuidava.

Mas preferia deixar tudo na mais absoluta miséria. Achava que os doentes deveriam penar como Cristo na cruz, e a exposição do sofrimento a ajudava a propagar sua visão fundamentalista da fé católica. Longe dos holofotes, segundo acusou Hitchens, a religiosa que pregava a pobreza e o sacrifício transitava com desenvoltura entre os ricos e poderosos (seus amigos iam da Princesa Diana até figuras deploráveis, como o ditador Baby Doc, do Haiti).

Um estudo acadêmico de 2013, feito no Canadá, corrobora as teses do polemista inglês (http://is.gd/6jHpb7).

No Brasil, Marina vê agora seu discurso e suas ações esquadrinhados como nunca. Apesar dos detratores, Madre Teresa (1910-1997) ganhou o Nobel da Paz, foi beatificada e ruma à santidade. Vamos ver o que o destino reserva a Marina, a candidata Califórnia.


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