Recall: 6 em cada 10 carros convocados no Brasil não foram consertados

Quantidade de carros chamados já é maior do que as frotas das regiões Norte, Nordeste e do Mato Grosso do Sul, somadas; especialistas afirmam que comunicação tem que melhorar

Por Guilherme Blanco Muniz


Abre especial recalls - Falha de comunicação (Foto: Autoesporte) — Foto: Auto Esporte

Você sabe se o seu carro tem um defeito de fábrica? E o do seu vizinho, tem? E o carro de um desconhecido que passa por você em um movimentado cruzamento tem um grave defeito? As chances de que todos nós, brasileiros, estejamos expostos a carros com falhas de fabricação no nosso cotidiano é grande. Por outro lado, esse problema é fácil de ser resolvido e, melhor ainda, é grátis.



De 2002 até o começo de agosto de 2015, as montadoras que vendem carros no Brasil já detectaram falhas de fabricação em mais de 8 milhões de carros. Mais precisamente: 8.915.100, segundo dados do Procon do Estado de São Paulo (até 10/08/2015). Só entre janeiro e as primeiras semanas de agosto deste ano, 1.794.221 destes carros foram diagnosticados com esse tipo de problema. Assim, 2015 conquistou o desagradável título de ano em que mais carros foram convocados para recall, conforme Autoesporte adiantou em julho.

Selo - Atenda ao recall - Tire um risco das ruas (Foto: Autoesporte) — Foto: Auto Esporte

Sempre que uma montadora percebe que seus carros foram fabricados com uma falha que pode colocar a vida da população em risco, é obrigada a convocar um recall. Ou seja: deve comunicar a todos os proprietários que fará uma ampla campanha de reparo da peça com problema. O chamado deve ser nacional, feito nos principais meios de comunicação e não tem data de validade. Isso quer dizer que mesmo que seu carro tenha sido convocado há anos, você ainda deve ir a uma oficina e exigir o reparo. E em hipótese alguma esse serviço pode ser cobrado. “O ideal é que não exista o recall, que não se coloque no mercado de consumo produtos com defeito, que possam causar riscos à segurança e saúde do consumidor. Mas, uma vez isso acontecendo, a norma exige que seja feito o recall”, explica Andréa Arantes, assessora executiva do Procon-SP.

Essa prática está prevista no Código de Defesa do Consumidor desde os anos 1990, mas só a sua existência não faz com que todos os carros deixem de representar um perigo iminente. É preciso fazer mais. Desde 2002, 3.566.638 carros atenderam ao chamado de recall e foram reparados. O número parece alto, mas significa que outros 5.343.850 veículos ainda podem estar em qualquer rua brasileira prestes a apresentar uma falha. Ou seja: 10% da frota nacional de carros tem que ser consertada. (Confira o infográfico ao fim deste texto)

“Isso mostra que temos rodando por aí veículos que colocam em risco a vida, a integridade e a segurança do consumidor”, diz Maria Inês Dolci, coordenadora institucional da Proteste - Associação Brasileira de Defesa do Consumidor. Já para a representante do Procon, isso mostra que as campanhas de recall no Brasil precisam ser melhor trabalhadas. “Sempre pode ser mais efetivo. O que a gente vê é que o recall é feito nos moldes determinados legalmente, mas muitas vezes não alcança os consumidores”, explica Andréa.

Recorde adiantado: Brasil bateu recorde de carros chamados para recall em 2015, mas índice de atendimentos tem caído. Números até 10/08/2015 (Foto: Autoesporte) — Foto: Auto Esporte

A média de carros reparados desde 2002 gira em torno de 60% a cada ano, mas 2004, 2011, 2013 e 2014 registram médias entre 24% e 46% de atendimento. Ou seja, apenas 3 em cada 10 carros convocados nesses anos já não representa mais risco. Para Mariana Tornero, advogada do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), esse índice “é baixo porque se é um defeito que pode causar algum dano à saúde e à segurança da pessoa, tinha que ser perto dos 100% [de reparo]”. E isso acontece apesar de a lei exigir que as montadoras divulguem os recalls em campanhas de TV, rádio, jornais e na internet.

"A comunicação individualizada é fundamental e muitas vezes não é feita." - Andréa Arantes, assessora executiva do Procon-SP

Assim como as especialistas consultadas são unânimes sobre a gravidade que o baixo índice de atendimento aos recalls representa, todas concordam que os órgãos de defesa do consumidor e as montadoras precisam melhorar as formas de contato com a população. “A comunicação no Brasil é feita de maneira a esclarecer que o consumidor faça o reparo, mas os riscos de não realizar não são colocados de maneira transparente. Eles sempre usam eufemismos, tentando não chocar tanto. Eu acho que nesse formato talvez o consumidor não entenda a urgência de fazer aquela reparação”, explica Mariana. Visão semelhante é compartilhada por Maria Inês, da Proteste.

Entrar em contato diretamente com cada consumidor afetado seria uma alternativa. “A comunicação individualizada é fundamental e muitas vezes não é feita. Não há exigência legal, mas ela é importantíssima. Nós percebemos baixos índices de atendimento pelo fato de o consumidor ou não ter tido conhecimento ou não dar a importância que deveria ser dada”, diz a representante do Procon. A comunicação individual e mais efetiva poderia ser feita por mensagens de texto, email ou ligações telefônicas, por exemplo.

Bom exemplo: Suzuki já consertou cerca de 80% dos Jimny convocados para recall em 2014 (Foto: Autoesporte) — Foto: Auto Esporte

Contato direto

Entramos em contato com todas as montadoras que convocaram recall no Brasil em 2015 para saber quais são as práticas adotadas para tornar a comunicação do chamado mais efetiva. Das 27 empresas, somente duas afirmaram fazer contato por telefone como padrão: Ferrari e Suzuki. É fácil entender porque a empresa que importa os esportivos italianos adota essa medida: em 2015, vendeu sete carros no Brasil e convocou para recall somente um (que já está em processo de reparo). Já a Suzuki, vendeu 1.561 carros até junho e convocou outros 255.
 

Das 27 montadoras, somente duas costumam ligar para todos os consumidores em caso de recall

É verdade que essas empresas lidam com um universo pequeno de carros, se comparado com marcas maiores. Mas, alguns casos são emblemáticos e podem servir de bons exemplos. Em 2010, a Suzuki convocou 154 unidades do modelo SX4 e, até agora, reparou 151 deles. “Quando chega o momento em que tem uma estagnação da curva de recall, a gente faz um intensivo com a rede de concessionários e também tentamos contatar os clientes que ainda não fizeram o recall. Faz parte do nosso ‘enxoval básico’ de recall”, explica Alexandre Zuccato, gerente de pós-venda da Suzuki. No ano passado, a empresa convocou outras 2.833 unidades do jipinho Jimny e até agora cerca de 80% dos carros foram reparados.

Dados do Procon mostram que empresas de maior porte também convocaram chamados de volumes parecidos, mas consertaram percentuais muito menores: a Chevrolet chamou 2.701 unidades do Omega, mas números oficiais mostram que nenhum carro foi reparado; já a BMW convocou 2.060 unidades de 11 modelos, também sem índice de reparo até o momento.

O órgão atualiza sua base de dados a partir de informações das próprias montadoras. Por isso, entramos em contato com todas as marcas que convocaram recall neste ano, mas poucas demonstraram ter acompanhamento constante da quantidade de carros reparados. A Chevrolet não respondeu aos nossos questionamentos, enquanto a BMW explicou que não teria a quantidade atualizada de carros efetivamente reparados neste ano no prazo de uma semana dado pela reportagem. “Eles tem esses dados, mas eles não querem tornar público. São eles que sabem a quantidade de veículos que colocaram no mercado”, comenta Maria Inês. As outras sete empresas que nos responderam explicaram que atuam seguindo apenas as exigências legais e, em poucos casos, enviando correspondências. Outras 16 montadoras nem responderam aos questionamentos da reportagem. (Confira a íntegra da resposta da BMW ao final do texto)

De 01/01/2015 a 10/08/2015 (Foto: Autoesporte) — Foto: Auto Esporte

Responsabilidade

Apesar de o Código de Defesa do Consumidor (CDC) não exigir expressamente que as montadoras entrem em contato individualmente com seus clientes, essa medida pode ser exigida caso os recalls não sejam considerados efetivos. “A comunicação individual é mais uma ferramenta importante que as empresas deveriam fazer uso, independente de haver ou não exigência legal. O próprio CDC, ao falar que é um principio da relação de consumo o consumidor ter a informação, ser educado, já deixa isso implícito. Então, é uma questão de postura das empresas quanto ao atendimento ao CDC“, explica Andréa. A representante do Idec tem opinião semelhante: “[a lei] não exige que seja uma convocação direcionada, mas se [a empresa] tem consciência de quem são os consumidores, pode buscar uma comunicação mais direcionada para atingir mais consumidores”, diz Mariana.

Luiz Moan, presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), engrossa o coro das especialistas que acreditam na necessidade de uma comunicação mais efetiva, e explica que as empresas têm dificuldades em localizar donos de carros usados. “O recall pode ser mais efetivo se nós conseguirmos aqui no Brasil um banco de dados que consolide as informações dos atuais proprietários dos veículos. Hoje, a grande dificuldade para se buscar uma maior eficiência e eficácia no recall é justamente porque nós, montadoras, só sabemos o nome do primeiro comprador”, diz.

A proposta é boa, mas pode demorar a sair do papel. Em 2010, o Denatran publicou portaria prevendo a criação de uma base de dados semelhante. A intenção era a de que as montadoras informassem quais veículos atenderam aos recalls. Com essa informação no Renavam dos carros, seria possível identificar veículos que ainda têm defeitos na hora da revenda, por exemplo. A medida entraria em vigor no início de 2011, mas quatro anos se passaram e a ferramenta ainda não está em funcionamento. O banco de dados seria importante não só para que os órgãos de defesa do consumidor tivessem acesso a mais dados, mas para que o consumidor pudesse ser mais cobrado a levar o carro à oficina. Afinal, quando um veículo não reparado é vendido, o perigo silencioso é empurrado para as mãos de outra pessoa.

Mais de 900 mil carros foram convocados no Brasil em 2015 por falhas no airbag

Consumidores que se sentirem desamparados devem exigir seus direitos nas lojas e, em último caso, acionar os órgãos de defesa do consumidor. A servidora pública Erika Catão levou seu New Fiesta 2012 para uma oficina autorizada da Ford de Recife quando percebeu que as portas de seu carro não estavam fechando direito. Ela conta que gastou “entre R$ 400 e R$ 500” com o reparo, mas descobriu algumas semanas depois que a falha motivou o recall de mais de 215 mil carros da marca. Agora, Erika garante que vai exigir o reembolso do valor e considera entrar na Justiça para ser ressarcida. O consumidor nunca deve arcar com esses gastos, mas se for aberto um recall por conta da mesma falha depois que o serviço foi executado, a montadora é obrigada a devolver o dinheiro integralmente. “É importante que o consumidor saiba que ele não pode sofrer nenhum tipo de prejuízo em razão de um problema que foi gerado pela própria montadora. O que ele gastou deve ser ressarcido”, garante Andréa, do Procon.

Com leis sendo aprimoradas e novas ferramentas sendo criadas ou não, os recalls de carros no Brasil podem ser mais efetivos. Para isso, porém, todos - sociedade, empresas e órgãos de defesa do consumidor - devem se unir com o objetivo de tirar os riscos que carros defeituosos representam nas ruas do país. “A consciência dos fornecedores foi ampliando no sentido de realização do recall ao longo do tempo. Talvez os consumidores não tenham ainda a noção da importância de cumprir com o chamamento. Então, eu acho que os dois lados têm culpa: um que achou que iria manchar a própria imagem e outro que achou que não era necessário”, afirma Mariana, do Idec. “Tem que haver uma fiscalização rigorosa. Todos tem que conversar, é uma cadeia de responsabilidade. E todos saem perdendo”, finaliza Maria Inês. (Colaboraram Alexandre Izo e Renato Bonfim)

Íntegra da resposta da BMW

"O BMW Group Brasil trata como prioridade a identificação de qualquer problema que possa comprometer a segurança dos motoristas e ocupantes dos veículos e atua com agilidade para a sua resolução, o que envolve a comunicação ampla e efetiva com o cliente, respeitando as exigências legais. Esta é uma preocupação da empresa em nível mundial e tem como objetivo garantir que a frota circulante das marcas BMW, MINI e BMW Motorrad sempre oferecerão o máximo de segurança e qualidade."

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