27 de agosto de 2014

Acerca da Eutanásia Voluntária


por Douglas Weege

Pressuponho que o leitor conheça minimamente as concepções de autonomia dos filósofos Immanuel Kant e John Stuartt Mill, assunto abordado pelos autores nas obras Fundamentação da metafísica dos costumes e On liberty, respectivamente. Com isso, a proposta é investigar as diferentes aplicações dessas concepções na ética biomédica.

Para analisar essas aplicações dos conceitos de autonomia é preciso lidar, obviamente, com casos concretos. Por isso, cabe a pergunta: que aplicações têm as concepções de autonomia de Kant e Mill acerca, por exemplo, da eutanásia? Pois bem, vale dizer que há uma variedade de classificações para a eutanásia, como se pode notar com a seguinte colocação de Possamai: “atualmente utilizam-se várias classificações para a eutanásia: eutanásia ativa e passiva; eutanásia voluntária, não voluntária e involuntária. Muitos autores se referem ainda aos termos distanásia, mistanásia e ortotanásia” (2009, p. 65). Não cabe aqui apresentar cada classificação, mas apenas dizer que será utilizada a noção de eutanásia voluntária para o que aqui se propõe, ou seja, a que “ocorre por vontade expressa e autônoma do indivíduo” (POSSAMAI, 2009, p. 65, grifo meu).

Como é sabido, nem Kant nem Mill analisaram de forma específica a questão da eutanásia voluntária. Como, então, supor suas visões a respeito? Ora, a partir das suas concepções de autonomia. Com relação a Kant, um exemplo clássico dele mesmo para pensar se a ação de um indivíduo em determinada circunstância pode tornar-se lei moral é eficiente aqui. Trata-se de sua análise em relação ao suicídio. Ele assim argumenta:

“Uma pessoa, por uma série de desgraças, chegou ao desespero e sente tédio da vida, mas está ainda bastante em posse da razão para poder perguntar a si mesmo se não será talvez contrário ao dever para consigo mesmo atentar contra a própria vida. E procura agora saber se a máxima da sua acção se poderia tornar em lei universal da natureza. A sua máxima, porém, é a seguinte: Por amor de mim mesmo, admito como princípio que, se a vida, prolongando-se, me ameaça mais com desgraças do que me promete alegrias, devo encurtá-la. Mas pergun-ta-se agora se este princípio do amor de si mesmo se pode tornar em lei universal da natureza. Vê-se então em breve que uma natureza, cuja lei fosse destruir a vida em virtude do mesmo sentimento cujo objectivo é suscitar a sua // conservação, se contradiria a si mesma e portanto não existiria como natureza. Por conseguinte aquela máxima não poderia de forma alguma dar-se como lei universal da natureza, e portanto é absolutamente contrária ao princípio supremo de todo o dever” (KANT, 2007, p. 60, grifo meu).

Na argumentação kantiana acima é importante fitar os olhos no que foi grifado. Se, por um lado, corre-se algum risco em supor o pensamento do filósofo alemão em relação à eutanásia voluntária a partir de sua abordagem sobre o suicídio, por outro, parece que a máxima capaz de levar um indivíduo a pensar em findar sua vida seja por motivos de saúde seja por outros parece ser a mesma. Por isso, o exemplo é útil aqui. No artigo, já citado, intitulado Autonomia e dignidade em Kant e a eutanásia voluntária, de Fábio Valenti Possamai, pesquisador do laboratório de bioética e ética aplicada a animais da PUCRS, publicado em outubro de 2009, o autor utiliza-se de um exemplo do livro Domínio da Vida, de Ronald Dworkin, para refletir acerca do pensamento kantiano em relação à eutanásia voluntária. Pois bem, para resumir, Possamai muito brevemente indica a noção do imperativo categórico kantiano (Clique aqui para saber sobre os imperativos kantianos) para surpreendentemente concluir que: “pensando a respeito, acreditamos que seria melhor viver em um mundo onde todos pudessem – em determinadas situações e sob certas condições – escolher se gostariam ou não de viver. A eutanásia voluntária, assim, “passa no teste” do imperativo categórico (2009, p. 68-9, grifo meu). Passa no teste do imperativo categórico? É preciso analisar.

Particularmente, considero a interpretação de Possamai um tanto equivocada. Levando em conta o imperativo categórico kantiano, bem como sua concepção de autonomia o que parece ficar claro é justamente o contrário, isto é, que a máxima justificadora da prática da eutanásia voluntária não passa pelo crivo que o filósofo estabelece para vir a ser uma lei moral e/ou um princípio universal. O próprio Kant menciona ao final do trecho sobre o suicídio, citado anteriormente, que “aquela máxima não poderia de forma alguma dar-se como lei universal da natureza, e, portanto, é absolutamente contrária ao princípio supremo de todo o dever” (KANT, 2007, p. 60). Além disso, é preciso lembrar que Kant atribui ao ser humano valor absoluto e no caso da eutanásia voluntária fica evidente que o indivíduo está sendo tratado como meio para um determinado fim, coisa inaceitável na ética kantiana. Neste sentido, a colocação abaixo é excelente:

No caso de um individuo que procura um profissional de saúde para praticar a eutanásia, com o intuito de se livrar de uma situação insuportável, pode-se considerar que ele está usando a humanidade em sua pessoa simplesmente como um meio, pois a finalidade do ato é se livrar de uma situação penosa. Portanto a máxima na qual se permite tirar a própria vida, devido uma situação penosa, sempre será imoral, pois nela a humanidade não tem um fim em si mesmo. De maneira, que tal máxima, não estando de acordo com imperativo categórico (que é a expressão da lei moral em forma de mandamento), não pode ser universalizada, e, por conseguinte uma máxima moral (FODERARIO, 2008, p. 10).

Portanto, a autonomia em Kant não pode ser confundida com uma mera escolha livre do indivíduo, mas, conforme o professor Darlei Dall’Agnol, como “auto-imposição de leis morais universais” (2014, p. 10). Deste modo, verifica-se que a aplicação da concepção kantiana de autonomia restringe, impede e proibi toda e qualquer ação/escolha individual que não possa se tornar uma lei universal. Se para alguns isso parece, de algum modo, negativo, por limitar severamente as ações individuais, é preciso dizer que, por outro lado, a ética kantiana possibilita um método bastante razoável para verificação, de fato, de uma boa vontade e/ou agir ético.

Tendo em vista o mesmo exemplo, da eutanásia voluntária, como supor a posição milliana? É aceito comumente que o conceito de autonomia de Mill é muito mais permissivo que a de Kant. Portanto, se em Kant há um critério bastante rigoroso para a ação do indivíduo, o mesmo não ocorre, a primeira vista, em Mill. Na abordagem milliana pode-se lembrar de um único limite imposto para a liberdade individual, a saber, a liberdade dos outros. Em outras palavras, o ser humano, segundo a noção de autonomia milliana, pode e tem o direito de ter e fazer qualquer escolha, desde que não cause dano a outrem. Pois bem, pensando no caso da eutanásia voluntária, a quem o indivíduo que faz tal opção pode causar dano? A resposta a essa pergunta não é tão fácil quanto alguns supõem. Isso porque não temos uma concepção rigorosa e precisa acerca do que é o “dano”, mesmo na obra de Mill. De maneira quase intuitiva muitos comentadores, que se dedicaram a analisar este ponto, assumem que a concepção milliana de autonomia permite a eutanásia voluntária, já que nesta escolha individual a pessoa não causa dano, conforme o entendem, a outro indivíduo e, além disso, promove a maior quantidade de felicidade ao maior número de pessoas. Embora, reconhece-se aqui a necessidade de um maior rigor para a concepção milliana de “dano”, verifica-se, como exposto, que a maioria dos intérpretes não tem dificuldades em reconhecer a permissividade que o conceito de autonomia de Stuartt Mill infere na ética biomédica. Talvez, por isso, pela ênfase na escolha do paciente em detrimento da visão paternalista da tradição hipocrática, Mill tenha ganhado mais espaço na realidade diária da medicina do que Kant. Essa predominância milliana é, em grande medida, ocasionada pela obra já mencionada Princípios de ética biomédica, de Tom Beauchamp e James Childress, que adotam claramente a concepção milliana de autonomia ao invés da kantiana, apesar de assumirem a noção de Kant de que o ser humano deve ser tratado com fim em si mesmo.

Pois bem, outros casos não necessitam ser analisados, pois no exemplo utilizado já se pode supor a visão geral de uma ou outra concepção de autonomia no que se referem às decisões a serem tomadas diante das inúmeras situações possíveis. A marca característica da autonomia kantiana é o rigor metodológico de sua aplicação, o que faz de sua ética muito mais restrita, isto é, proibitiva. No caso de Mill, ao contrário, supõe-se uma possibilidade maior, por exemplo, dos indivíduos optarem, de fato, pela eutanásia voluntária. Em casos como o aborto, melhoramento genético, entre outras possibilidades, as aplicações não são diferentes. Kant sempre exigirá uma ação por dever, enquanto Mill incentivará a escolha individual sem que se cause dano a alguém. Embora, conhecida as concepções de autonomia e explicitada muito brevemente aqui suas aplicações na ética biomédica, isto é, mesmo estando claro que a ética kantiana é mais restritiva do que a de Mill, é importante ressaltar que tanto um quanto outro não atribuem a concepção de autonomia uma ação universalmente individual, como é muito comum pensar pelo senso comum. Ambos estabelecem limites para a ação humana autônoma. Kant mais do que Mill. Mesmo assim, nem Mill pode ser acusado, ao defender a liberdade individual, de retirar do indivíduo toda e qualquer responsabilidade de sua ação, mas, ao contrário, impõe um limite e este, assim como o de Kant, não é tão simples de ser seguido. Fato é que existem outras concepções distintas de autonomia e, consequentemente, outras aplicações possíveis em casos como a eutanásia. Entretanto, como Kant e Mill são os mais evidentes nesse debate, coube apresentá-los muito sucintamente aqui. Para não concluir é importante dizer: a discussão continua aberta.

Fontes Bibliográficas:
DALL'AGNOL, D. Filosofia e bioética no debate público brasileiro. Ideias, Campinas, n. 4, p. 95-121, 1o semestre 2012. Acesso em: 2014.

DALL'AGNOL, D. Aplicando a ética [Capítulo 10 do Livro-texto de ética em revisão para publicação]. Florianópolis, 2014.

FODERARIO, V. E. A eutanásia voluntária vista a partir do princípio de autonomia em Kant, 2008. Disponivel em: . Acesso em: 18 ago. 2014.

KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. 1a. ed. Lisboa: Edições 70, 2007.

KENNY, A. Ética. Crítica na rede, 2005. Disponivel em: . Acesso em: 13 Agosto 2014.

MILL, J. S. On Liberty. Kitchener: Batuche Books, 2001.

POSSAMAI, F. V. Autonomia e dignidade em Kant e a eutanásia voluntária. Kínesis, v. I, n. 2, p. 64-72, outubro 2009.

REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia, 5: do Romantismo ao Empiriocriticismo. São Paulo: Paulus, 2005.

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