Toda Luz Que Não Podemos Ver (Anthony Doerr)

toda-luz

“Naquelas últimas noites em Paris, caminhando para casa com o pai à meia-noite, o enorme livro enganchado ao peito, Marie-Laurie pensa poder sentir um arrepio no ar, nas pausas entre os chiados dos insetos, como a superfície de água congelada trincando quando se coloca peso demais sobre ela. Como se todo esse tempo a cidade não fosse mais do que a maquete construída pelo seu pai, e a sombra de uma grande mão caísse sobre ela. ” (Página 77)

“- Sabe a maior lição da história? A história é aquilo que os vitoriosos determinam. Eis a lição. Seja qual for o vencedor, ele é quem decide a história. Agimos em nosso próprio interesse. Claro que sim. Me dê o nome de uma pessoa ou de um país que não faça isso. O truque é perceber onde estão os seus interesses. ” (Página 89)

Há inúmeros livros de ficção retratando o período da Segunda Guerra Mundial. Eu mesma, já li livros retratando o sofrimento impingido aos não-arianos, livros retratando a resistência dos que tentaram (muitas vezes sem sucesso) se manter longe dos campos de concentração, livros que se focam mais no front de batalha, outros que até tentaram utilizar a Guerra na trama, mas que se focaram tanto na parte romântica que a intenção de ser um romance de guerra ficou só na intenção. Há também aqueles que não são ficção. Quem não conhece a história da garota Anne Frank? Quem não se compadeceu por seu sofrimento? O fato é que a Segunda Guerra Mundial envolveu muitos países, praticamente todos os continentes, e teve desdobramentos que ainda se refletem hoje. Então, por mais que o assunto seja muitas vezes revisitado, há ainda algum ponto, alguma faceta desse período negro da história que pode ser utilizado como ponto de partida para uma nova história. Foi isso o que Anthony Doerr fez em seu Toda Luz que Não Podemos Ver. Doerr é formado em história e usou como inspiração para sua trama a quase destruição da cidade de Saint-Malo na França – em agosto de 1944, durante a Batalha da Normandia, e o papel fundamental que o rádio teve durante a Guerra.

Na França, na Paris pré-guerra conhecemos Marie-Laurie que vive perto do Museu de História Natural onde seu pai trabalha como chaveiro, o responsável por cuidar das inúmeras chaves do prédio. Marie-Laurie ficou cega aos seis anos e seu pai passou a levá-la todos os dias ao museu para que ela reaprendesse a “ver” o mundo. Ele também fez uma maquete do bairro onde moram para que a menina aprendesse os diferentes caminhos que a levam até em casa e assim, ganhasse um pouco de independência.

Na Alemanha conhecemos Werner Pfenning e sua irmã Jutta, duas crianças órfãs criadas em um orfanato mantido por uma missionária francesa. Aos oito anos, Werner encontra um velho rádio quebrado e com muita curiosidade e perseverança o faz funcionar novamente. É assim que ele descobre seu amor pelas ciências e passa a ter sonhos de se tornar um grande cientista um dia, apesar das forças contrárias que querem mantê-lo confinado às minas de carvão de sua pequena cidade.

A história é narrada sob o ponto de vista de Marie-Laurie, Werner e ocasionais participações de outros personagens. A linha temporal não é seguida de forma linear, vamos e voltamos no tempo inúmeras vezes. Acompanhamos duas histórias paralelas, uma envolvendo os personagens no período pré-guerra e nos primeiros anos do avanço alemão e outra trazendo os momentos derradeiros desse embate. São dez anos de distância que pouco a pouco vai sendo diminuída, até que tudo se entrelaça. Pode até ficar confuso no início, mas a linha temporal bem demarcada não deixa o leitor se perder. E o artifício funcionou muito bem. Garantiu mais dramaticidade à obra do que seria se a história seguisse uma linha temporal contínua. Em muitos momentos somos deixados em suspenso, com cliffhangers que nos fazem querer avançar na leitura ainda mais rapidamente para descobrir seus desdobramentos.

A forma como Doerr utilizou o rádio para dar vida a sua história foi bem emblemática. O rádio foi esperança de um futuro melhor, do escape das forças restritivas; foi saudade e homenagem para aqueles que já partiram; foi ataque, foi defesa e foi resistência e também um alento nas horas mais sombrias. Aliás, assim como o rádio, os livros também foram símbolo de resistência. Permitiam um escape para um mundo melhor, conferiam um pouco de alegria em meio a tantas tristezas e forneciam a carga de força necessária para um embate iminente.

A obra de Doerr é poética em sua singeleza, é fidedigna (no máximo possível) com o período que foi retratado, e é dramática, porque acima de tudo, ainda que houvesse esperança, esse foi um período de trevas, de perdas irreparáveis e de futuros despedaçados. E Doerr não se privou de nos mostrar isso também. Sempre enfocando naqueles que sofreram, que agiram, que lutaram e vivenciaram esses momentos. Talvez resida aí a beleza de sua história. Em seus personagens. Aqui não há vilões ou mocinhos. Não no sentido estrito das palavras. No lado alemão, conhecemos Werner e Jutta e nos enternecemos pelo relacionamento dos irmãos e torcemos para que eles tenham um futuro melhor. Mais a frente, conhecemos Volkheimer, e o gigante calado capaz de atirar como ninguém, também é capaz de agir com ternura para com os outros. Na França, há Marie-Laurie, a garotinha cega curiosa a despeito das dificuldades e com um pai que não mede esforços para ajudá-la a superar suas dificuldades. Depois vem madame Manec e Etienne, a resistência, a superação e o amor filial. Pessoas em lados diferentes da guerra, que têm seus caminhos cruzados de várias maneiras, colocados para combater uns aos outros por forças que não podem controlar. E a seu modo, cada um mostrando sua resistência, fazendo uso de sua carga de bondade, sonhando com o direito de ter um amanhã. Quem sabe enxergar a luz que ainda não puderam ver.

Saint-Malo em 1944. Fonte: © ST-MALO CARNETS D’INTRA-EUROS

Saint-Malo em 1944. Fonte: © ST-MALO CARNETS D’INTRA-EUROS

Compre aqui:

Cultura Saraiva Travessa Fnac Fnac Fnac

3 Comentários

Arquivado em Editora Intrínseca, Editoras Parceiras, Resenhas da Núbia

3 Respostas para “Toda Luz Que Não Podemos Ver (Anthony Doerr)

  1. O seu blog é interessante,muito bom mesmo, o tipo de blog que a gente gosta de ler sempre,procurarei lê-lo.

    Curtir

  2. Pingback: Um Autor de Quinta #103 | Blablabla Aleatório

Gostou do post, então comenta!