Flávia Yuri Oshima

É claro que gastronomia é cultura

É claro que gastronomia é cultura

Por que o país só tem a ganhar com a aprovação da lei que reconhece nosso jeito de comer

FLÁVIA YURI OSHIMA
16/01/2015 - 17h54 - Atualizado 16/01/2015 18h30

É curioso acompanhar as discussões em torno do projeto de lei que defende que a gastronomia seja, oficialmente, reconhecida como manifestação cultural e, portanto, tenha acesso aos benefícios do Ministério da Cultura para o setor - incluindo aí a Lei Rouanet. Com ela, eventos, pesquisas, publicações, criações e manutenção de acervos sobre gastronomia poderão ser financiados com verba dedutível do imposto de renda.

O estranhamento é constatar que exista polêmica em torno disso. Em algum momento, na história da humanidade, os ingredientes que consumimos, as receitas que usamos e os métodos de cocção que adotamos não fizeram parte da nossa cultura? Existe mesmo alguma dúvida de que gastronomia deva ser encarada como manifestação cultural?

A grita ocorre em torno da Lei Rouanet. Cozinheiros não são artistas. Os artistas verdadeiros já disputam os benefícios da lei com muitos tipos de atividade. Esse é um dos motivos de contestação à gastronomia como cultura. Todos têm o direito de se expressar, mas o argumento é mesquinho perto de tudo o que o país teria a ganhar ao apoiar oficialmente o setor. Estamos muito atrasados nessa área.

Alguns exemplos do impacto que o apoio oficial à gastronomia pode gerar:

A tradicional receita de galinha ao molho pardo é proibida em restaurantes brasileiros. O uso de sangue da ave no molho infringe as normas da vigilância sanitária. Algo parecido ocorre com o mel de abelhas brasileiras nativas. O fato desse mel ser mais úmido e fermentar também fere as regras atuais da vigilância sanitária, apesar de nenhum teste – dos muitos feitos até agora - ter indicado que isso seja prejudicial à saúde. Esses são dois entre muitos outros casos de alimentos e métodos tradicionais sob ameaça de desaparecer por causa da padronização de segurança sanitária moderna. França, Alemanha, Japão e Estados Unidos evitaram que as regras sanitárias jogassem receitas e ingredientes tradicionais para o esquecimento foi reconhecendo seu valor como parte da identidade do país. Seu valor cultural.

Nosso vizinho de continente, o Peru, conseguiu liberar e estimular o preparo de ceviche, (prato à base de peixe cru cujo preparo não era permitido fora de cozinhas industriais), depois de legitimar suas receitas e seus ingredientes como patrimônio do país. Hoje, rotas de ceviche atraem turistas do mundo todo dispostos a provar os diferentes peixe, temperos e preparos regionais. No sul dos Estados Unidos, o leitão assado inteiro na brasa infringe leis de vigilância sanitária, (por ficar mais de vinte horas exposto), e de segurança, (por exigir uma fogueira acesa por todo esse tempo). Mas a receita é liberada por ser entendida como parte da história do país. Os churrasqueiros que sabem domar as brasas que nunca apagam são celebridades que atraem turistas de todo o mundo.

Encampar a gastronomia como manifestação cultural é também vital para incentivar a pesquisa gastronômica. Num país em que mais de 7 milhões de pessoas ainda passam fome, é essencial fazer o reconhecimento, o mapeamento e a divulgação das Pancs,  as plantas alimentícias não-convencionais, que nascem espontaneamente nas matas, nas beiras de estrada e em terrenos baldios. O caso recente mais gritante de desperdício, por falta de conhecimento, é o do arroz negro. O produto, descoberto recentemente, tem mais fibras, mais vitamina B1 e menos caloria que o arroz integral. O arroz negro era combatido como uma praga no Vale do Paraíba. Hoje, o produto é servido em pratos sofisticados.

E não é só isso. O reconhecimento da gastronomia como parte de nossa história ajudará a fazer o registro apropriado das espécies que desenvolvemos, dos métodos que inventamos e das receitas que criamos. Garantir a perenidade de ingredientes locais também é uma forma de proteger nossos pequenos agricultores, de desenvolver ainda mais a produção gastronômica em torno deles e, assim, mostrar ao mundo uma assinatura gastronômica própria: "venha ao Brasil provar nossas receitas feitas com ingredientes únicos".

A turma que compõe o movimento #eucomocultura, - que inclui o chef Alex Atala,  a Organização Amigos da Terra e o Instituto Socioambiental -, está em campanha para conseguir um milhão de assinaturas para pressionar a aprovação do Projeto de Lei que leva a gastronomia  para o mundo da cultura. Como manifestações online não são válidas, o site oferece o PDF de um formulário para ser impresso, assinado e enviado pelo Correio (sim, você ainda se lembra dele?) para a caixa postal do movimento.

A câmara está em recesso até o dia 1º de fevereiro. O projeto de lei ainda precisa passar por três instâncias de aprovação na casa e no Senado até a sanção da presidente. Deve levar meses. Pode levar anos. Se fosse aprovado hoje, já estaríamos atrasados. Isso é triste, mas não é motivo para desistir. Antes tarde do que mais tarde.








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