Brasil Conte algo que não sei

Taxista que mora no Rio conta como sobreviveu a campos de concentração nazistas

No Dia Internacional em Memória do Holocausto, polonês descreve execução da irmã e relata sua fuga do horror
Alexander Liberman é sobrevivente do Holocausto: ‘As pessoas não têm ideia do que foi aquilo’ Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Alexander Liberman é sobrevivente do Holocausto: ‘As pessoas não têm ideia do que foi aquilo’ Foto: Leo Martins / Agência O Globo

“Tenho 84 anos, sou casado, tenho filhos, netos e bisnetos. Quase morri diversas vezes. O número de identificação dos campos está no meu braço até hoje. Morei em Israel, cheguei ao Brasil aos 28 anos, fui camelô, fui taxista, mas já me aposentei. Hoje moro na Lapa. É bom ter uma vida normal aqui”

Conte algo que não sei.

A vida vale a pena. Ou, se não fosse assim, eu não estaria aqui. Achei que fosse morrer várias vezes. Há coisas que aconteceram no Holocausto que a gente nem consegue dizer. Só Deus sabe o que sofri e vi.

O senhor perdeu toda a família. Como foi isso? Conseguiu saber o que aconteceu?

A gente vivia na Polônia. Eu tinha nove anos. Os alemães encontraram primeiro meu pai e meu tio, que tinham uma loja de sapatos. Foram levados para a guilhotina. Eu tinha três irmãos — um de sete anos, uma de três e a menor, de seis meses. Ficamos escondidos no porão com minha mãe. Um dia fui comprar comida e os alemães me viram.

O que aconteceu então?

Eles nos levaram para uma fila onde matavam judeus. Quando chegou a vez da minha mãe, pegaram minha irmã menor, jogaram para o alto e atiraram na cabeça. Eu disse a mamãe, aos berros, que não ia oferecer a eles minha cabeça e saí correndo. Acertaram no abdômen. Só tirei a bala no Brasil, aos 28 anos. Corri para a mata, lá encontrei um grupo e, a partir daí, virei soldado. Aprendi a mexer com armas. Nunca mais soube da minha família e acho que todos morreram naquela época.

Pode descrever sua vida no campo de concentração?

Passei por vários. Fui escolhido para morrer com patrícios em diversas oportunidades, mas sempre consegui escapar. Havia momentos em que eu achava que não ia mais ter jeito. Mas sempre tive Deus dentro de mim e, além disso, nunca tive medo, enfrentava tudo. Tinha que ser esperto para não morrer. Pegar batata para os alemães comerem. As cascas que eles deixavam a gente recolhia e cozinhava. Dormíamos num galpão onde cabiam mil pessoas. De manhã, ficávamos em fila, eles olhavam, decidiam quem ia morrer naquele dia e quem ia trabalhar.

Qual a coisa mais difícil que teve que fazer para resistir?

Foi no campo de Majdanek, na Polônia. Os alemães me deram um alicate e mandaram entrar num galpão cheio de judeus mortos e arrancar os dentes de ouro deles. Andei em cima dos cadáveres. Eles me ameaçavam com seus cachorros para que eu obedecesse. Achei um judeu vivo que cochichou: pode arrancar o dente, mas finge que estou morto.

É fato que conheceu Stálin?

Quando os russos chegaram, perguntaram se eu estava mesmo vivo. Eu me encontrava muito magro e sem forças. A tropa me levou até Moscou e a Stálin. Ele fez a mesma pergunta: “Estás vivo?” ( Risos ). Lá me deram roupa bonita, comida e, a mando dele, fui logo levado a um internato.

Hoje, no Palácio do Itamaraty, celebra-se o Dia Internacional em memória às Vítimas do Holocausto, criado pela ONU e parte dos 450 anos da Cidade do Rio. Eventos assim amenizam a dor?

Recebi o convite. Acho importante, pois as pessoas não têm de fato ideia de tudo o que passamos. Eu mesmo movi uma ação e ganho uma pensão do governo alemão no valor de 518 euros por mês (cerca de R$1.500), mas nada é tão significativo quanto se perder uma família ou ver tanto sofrimento.

O senhor conta tudo isso com muita lucidez e não perde o bom humor, o sorriso. Como isso é possível?

Eu tenho fé. Não é uma questão de religião. É fé mesmo, tenho Deus dentro de mim. Estou tentando sobreviver a tudo com a maior calma. Sou casado, aposentado, tenho uma vida normal. Isso é muito bom.