O chavão da “sã doutrina”

 

 

 José Brissos-Lino

 

“Cristo não foi essencialmente professor, legislador, mas ser humano, ser humano real como nós. Por isso, ele não quer que em nosso tempo sejamos alunos, representantes ou defensores de determinada doutrina, mas seres humanos, seres humanos reais perante Deus.” (Dietrich Bonhoeffer)

“Viajar ao redor do mundo e conhecer o clero de todas as denominações ajudou a moldar-me num ser ecuménico. Estamos separados pela teologia e, em alguns casos, pela cultura e pela raça, mas essas coisas não significam mais nada para mim.” (Billy Graham, U.S. News & World Report, 19 de Dezembro de 1988)

 

Jesus Cristo não veio a este mundo para ensinar uma doutrina em particular mas sim para reconciliar os homens com o Pai.

Não vemos o Mestre de Israel alimentar discussões teológicas com os teólogos da época. A única vez que terá discutido doutrina e teologia com os doutores da Lei terá sido aos doze anos, aquando da visita a Jerusalém e mesmo aí as Escrituras não registam o teor da argumentação, pelo que a mesma será irrelevante para nós (Lc 2:41-47). E se o fez é porque tal se inscrevia na tradição judaica como rito de passagem dos adolescentes do sexo masculino.

Sejamos claros, a doutrina não é uma vaca sagrada. Desmistifiquemos esse mito.

A doutrina é sobretudo uma questão de identidade.

Todo o ser humano dispõe de uma identidade. Ela implica características distintivas, que não só o distinguem de outros cidadãos como lhe conferem um sentido próprio e muito pessoal. A arquitectura estética e conceptual do indivíduo, as suas origens, a sua história de vida, o seu self, fazem dele uma pessoa única e irrepetível.

É claro que alguns gostos, vocações e características pessoais não são exclusivas daquele dado indivíduo, o que lhe permite a identificação de grupo ou comunitária com outros seus semelhantes. Mas até estes aspectos, digamos, mais sociais, ajudam a definir a sua singularidade. Por exemplo, um jogador de futebol não é igual, apesar de tudo aos seus colegas, embora possa ter a mesma nacionalidade, idade, naturalidade, clube ou posição de jogo. Será sempre um jogador diferente de todos os outros, e nesse sentido, único.

O abraçar de uma doutrina específica tem aspectos de casualidade

Não conheço ninguém que, antes de se decidir por abraçar uma doutrina religiosa qualquer, tenha, previamente à sua decisão, procedido a um estudo aprofundado sobre a “oferta” existente no “mercado” para depois então optar. O que acontece é que, por razões de ordem mais fortuita, por alguma razão a pessoa entrou na vida cristã por uma porta específica e a partir daí passou a desenvolver uma experiência e um conhecimento à volta daqueles princípios de fé.

Por vezes entra-se pela porta da herança da fé dos pais, outra pela da influência dos amigos, familiares ou colegas, e outras vezes por motivos ainda de outro género.

É por isso que o fanatismo, o sectarismo e o fundamentalismo não se dão bem, regra geral, com o debate aberto de ideias e conceitos. Porque os mais radicais na doutrina nunca abordaram realmente perspectivas doutrinárias diferentes, de mente aberta, sem preconceitos. Ao primeiro embate tomam consciência da sua insegurança e radicalizam o discurso por uma questão de defesa.

A doutrina não salva ninguém

Apesar de parecer redundante, talvez não seja má ideia relembrar que o nosso Salvador é Cristo e não a Cristologia (doutrina de Cristo). Logo, a doutrina não salva ninguém.

Ela é, antes de mais, um sistema organizado de fé e crenças que confere um sentido à dimensão espiritual do indivíduo e da comunidade de fé em que se insere. A doutrina organiza as minhas convicções, oferece-me uma dada cosmovisão espiritual, mas não mais do que isso.

A doutrina pode ser um embaraço

Se não for convenientemente entendida, a doutrina pode ser até um embaraço na caminhada do cristão. Pode ser motivo de orgulho religioso, como tantas vezes sucede. Pode mesmo impedir-me de ver Cristo nos outros, que seguem uma doutrina diferente da minha. Pode, ainda, tornar-se tradição e vulgarizar-se, como é corrente e perder o seu significado e vitalidade.

Quando ouço proclamar a glorificação da “sã doutrina” temo sempre que o foco da questão esteja deslocalizado.

Não é a doutrina que promove a unidade do Corpo

Alguns pensam que as pessoas se juntam à volta da doutrina. Cada vez mais verifico que tal coisa não corresponde à verdade. As pessoas ligam-se por relacionamentos, por interesses comuns, por hábitos e tradições, mas não por adesão a declarações de fé, escritas ou não.

A verdade é que, se perguntarmos à esmagadora maioria das pessoas que constituem uma determinada comunidade local de fé pela sua doutrina, não saberão explaná-la. Logo, não será este o cimento agregador da comunidade.

A doutrina não é estática

Por muito que custe a alguns, mas a doutrina não é uma montanha inamovível, não é coisa estática.

É certo que a Palavra de Deus não muda, mas muda o nosso entendimento da mesma. A sua interpretação e compreensão muda ao longo da vida. E quando tal não acontece é mau sinal. Significa que abdicámos do exercício de pensar.

A teologia é dinâmica. Faz-se a cada momento, uma vez que resulta da aplicação concreta dos princípios bíblico-teológicos à realidade da vida, num dado momento histórico-cultural e numa determinada geografia.

A Bíblia não é um compêndio de doutrina

Embora muitos a abordem dessa maneira, a verdade é que a Bíblia não é um tratado doutrinário. É um conjunto de histórias de vida, de proclamações e de revelação divina apresentada de diversas formas. Tratá-la como se fosse uma espécie de Código de Processo Civil ou de Enciclopédia Britânica só pode dar mau resultado.

Por muito que isso custe a quem não está habituado a pensar, a Bíblia não precisa só de ser lida mas também interpretada. E quem nega fazê-lo está já a assumir uma determinada interpretação dos textos bíblicos, que não será a melhor.

A doutrina é necessária

Apesar de tudo quanto atrás fica dito a doutrina é necessária. Se não houver um corpo de doutrina o cristão não passa de uma onda do mar, que vai e vem conforme o vento.

A tendência actual é para desvalorizar a doutrina, da mesma maneira como acontece com a ideologia nos partidos políticos. Mas o pragmatismo, só por si, não constitui resposta adequada nem na política nem na vida espiritual.

A linha doutrinária não será o mais importante de tudo, mas é imprescindível a uma vida espiritual sã.

Assim como um psicólogo ou cientista social trabalha no âmbito de uma filosofia ou teoria científica com a qual se identifica e que lhe faz sentido, seja ela qual for, assim também o cristão organiza a sua fé e vida espiritual tendo por base uma determinada linha doutrinária.

Mas afinal o que é a “sã doutrina”?

Repare-se que utilizei até agora e praticamente de forma indistinta, os termos “doutrina” e “teologia”, que são diferentes entre si. Mas procurei ater-me ao significado popular do primeiro. Todavia, se atendermos ao sentido etimológico da palavra, doutrina será o conjunto de “princípios fundamentais de uma crença, sistema ou ciência.” Isto é, as bases de fé, no caso vertente.

Só que a expressão neotestamentária “sã doutrina”, tantas vezes referida e outras tantas vezes mal interpretada, em muitos círculos não constitui mais do que um chavão religioso, pois é lida habitualmente como aquilo que uma igreja específica determina que os seus fiéis devem crer e praticar.

Esta expressão paulina é usada por cinco vezes nas epístolas pastorais, a Timóteo e a Tito (1 Tm 1:10; 4:6; 2 Tm 4:3; Tt 1:9; 2:1), com a variante “boa doutrina” por uma vez.

No caso das cartas a Timóteo a expressão refere-se, invariavelmente, ao oposto de heresias (“outra doutrina” – 1 Tm 1:3, “fábulas” – 1 Tm 1:4 e 2 Tm 4:4, “doutrinas de demónios” – 1 Tm 4:1, “fábulas profanas e velhas” – 1 Tm 4:7), que na época faziam perigar a fé cristã nascente. No caso da carta a Tito refere-se à exortação a um comportamento adequado por parte dos presbíteros, idosos, jovens e escravos (Tt 1 e 2). O apóstolo exorta mesmo o jovem Tito a não dar ouvidos às “fábulas judaicas, nem aos mandamentos de homens que se desviam da verdade” (1:14).

Parece claro que a preocupação apostólica é aqui a de que o ensino cristão seja preservado de forma íntegra e sã, do que resultará saúde espiritual para os crentes e as comunidades cristãs.

Conclui-se, portanto, que a “sã doutrina” é uma expressão de Paulo, utilizada tanto para combater as tendências heréticas como para reprovar os comportamentos que não dignificam o Evangelho. A expressão, que é instrumental, nunca se refere a um corpo de doutrina específico e concreto que deva ser preservado, como por vezes se quer fazer crer.

Conclusão

O fim último da vida cristã não é ter um corpo de doutrina muito bem sistematizado e elaborado, mas sim dar fruto (é por essa capacidade que conhecemos os homens: “pelos frutos os conhecereis”), evidenciar o fruto do Espírito (como resultado da operação do Espírito Santo em nós), ser sal e luz no mundo dos homens e cartas vivas que proclamam as boas novas do Evangelho.

E isto, realmente, tem tudo que ver com vida e muito pouco com sistemas doutrinários.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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