Política

Livro analisa proximidade entre construtoras e regime militar

Decreto assinado por Costa e Silva possibilitou reserva de mercado

RIO - O decreto 64.345, assinado pelo então presidente Costa e Silva e publicado no Diário Oficial da União de 10 de dezembro de 1969, era claro: “Os órgãos da Administração Federal, inclusive as entidades da Administração Indireta, só poderão contratar a prestação de serviços de consultoria técnica e de Engenharia com empresas estrangeiras, nos casos em que não houver empresa nacional devidamente capacitada e qualificada para o desempenho dos serviços a contratar”.

Em outras palavras, o documento garantia a reserva de mercado às construtoras nacionais na realização de obras públicas, em tempos de pesados investimentos do governo em infraestrutura. Publicado um ano após o AI-5 - com o Congresso Nacional fechado -, o decreto proporcionou às empreiteiras brasileiras, hoje envolvidas no esquema de corrupção descoberto pela Operação Lava-Jato, o salto em um mercado antes dominado pelas estrangeiras, como a dinamarquesa Christiani-Nielsen.

- O decreto cria o cenário ideal para esses empresários (das construtoras nacionais), com a proteção do mercado, o aumento das margens de lucro e a adoção de práticas cartelistas - resume o professor Pedro Campos, do Departamento de História e Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e autor da tese de doutorado que deu origem ao livro “Estranhas catedrais - As empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar”.

O estudo traça um panorama da atuação do setor de construção civil, com foco nas principais empresas da época.

- Antes do golpe, as empreiteiras (nacionais) eram basicamente especialistas em obras rodoviárias. Elas ampliaram essa atuação na ditadura, com uma ampla proteção do aparelho do Estado, conquistaram know-how e, posteriormente, exportaram essa experiência para o exterior — afirma Campos.

O caso mais emblemático do período é o da Camargo Corrêa. Um dos fundadores da companhia, Sílvio Brand Corrêa, era cunhado do então governador de São Paulo, Adhemar de Barros. Segundo Campos, o acesso privilegiado às instâncias superiores de poder fez com que a construtora, que já era de grande porte antes do regime, fosse alçada ao topo da lista das empresas de construção civil. Entre 1971 e 1984, a empreiteira só não alcançou o maior faturamento do setor em dois anos: 1979 e 1984. A afinidade com os militares também aparece no financiamento da Operação Bandeirante (Oban), fato registrado por Campos em sua tese e pelo diretor Chaim Litewski no documentário “Cidadão Boilesen”.

- Essa prática de contribuir com a Operação Bandeirante, para financiar mecanismos de perseguição, tortura e assassinato de agentes da resistência à ditadura e da guerrilha armada, fez com que a ALN (Ação Libertadora Nacional) planejasse matar o Sebastião Camargo (outro fundador). Uma revista, à época, chegou a registrar que ele mandara os familiares próximos para fora do Brasil.

CRESCIMENTO DA ODEBRECHT

A trajetória da Odebrecht nos anos de ditadura também é peculiar. Antes uma empresa local, com atuação na Bahia e algumas obras espalhadas pelo Nordeste, a companhia teve um crescimento rápido no período. A primeira obra fora da região foi realizada em 1971: o edifício-sede da Petrobras, na Avenida Chile, Centro do Rio. Segundo Campos, o contato com os militares da estatal abriu as portas para a realização de empreendimentos maiores.

- Era uma empreiteira sem escala nacional. Não participou da construção de Brasília. Depois da sede da Petrobras, a Odebrecht fez o prédio da Uerj e duas obras que a colocaram entre as maiores do país: o aeroporto do Galeão e as usinas nucleares de Angra dos Reis. A empresa investiu em uma política de boa relação com as Forças Armadas, que se mantém até hoje - reforça Campos, citando a construção, em curso, e da base naval de submarinos em Itaguái, obra contratada pelo Ministério da Defesa.

Obras da Usina Nuclear de Angra dos Reis ( Angra 2 ) durante o período militar Foto: Luis Pinto / 16-12-1982
Obras da Usina Nuclear de Angra dos Reis ( Angra 2 ) durante o período militar Foto: Luis Pinto / 16-12-1982

FALTA DE ARTICULAÇÃO PREJUDICA EMPREITEIRA

Entre os casos relatados por Pedro Campos em “Estranhas catedrais — As empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar", há episódios em que a falta de articulação com o governo militar prejudicou as construtoras. A Rabello, fundada em Minas Gerais e maior construtora nacional nos anos 1950, mantinha uma relação próxima a Juscelino Kubitschek, desde os tempos em que ele era prefeito de Belo Horizonte. A construtora foi responsável pelo Complexo da Pampulha, na capital mineira, e, já no governo JK, por um pedaço expressivo da construção de Brasília, como o Eixo Monumental. A identificação com um inimigo de regime e a falta de entendimento com os novos representantes do poder foram cruciais para o destino da empresa.

- A Rabello começa a perder licitações e arruma uma solução paliativa: vai para fora do Brasil. Ela chegou a fazer uma obra grande na Argélia, a da Universidade de Argel, mas não resistiu e decretou falência nos anos 1970 - destaca o professor, que cita um caso da proximidade entre a empresa e o ex-presidente. - O Samuel Wainer conta em seu livro de memórias que procurou o Juscelino para pedir ajuda em um momento em que a “Última Hora” passava por uma grave crise financeira. O Juscelino o aconselhou a procurar o Marco Paulo Rabello (fundador da construtora), que realmente socorreu financeiramente o jornal.

ASCENÇÃO E QUEDA

A pesquisa também remonta à história da Mendes Júnior, citada por Campos como “a maior multinacional brasileira de engenharia durante a ditadura”. Na lista das grandes do país, se destacava como a construtora com mais contratos internacionais. Como base de comparação, a Camargo Corrêa, gigante do período, só executou uma obra no exterior.

- Foram mais de dez obras fora do Brasil (feitas pela Mendes Júnior). Era uma empresa afinada com a estratégia do governo de conseguir obras no exterior para exportar equipamentos e conseguir recursos para balancear as contas externas - aponta Campos.

A atuação além das fronteiras foi também responsável por uma reviravolta na história da empresa, já durante o regime democrático. Para sair do Iraque após o início da Guerra do Golfo, a construtora largou equipamentos e assumiu o compromisso de não cobrar dívidas do governo iraquiano. O prejuízo, cobrado em vão do governo brasileiro, achatou o tamanho da companhia, que saiu da lista das construtoras de maior porte.

ENTIDADES FORTALECEM LAÇOS COM O GOVERNO

A relação entre as construtoras e o governo não era construída apenas pelos executivos das empresas. As entidades de classe, como a Câmara Brasileira da Indústria da Construção (Cbic) e o Sindicato Nacional da Indústria da Construção (Sinicom), participavam das articulações políticas. Segundo o professor Pedro Campos, do Departamento de História e Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e autor de “Estranhas catedrais — As empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar”, esta atuação organizada foi fundamental para o sucesso da estratégia.

— É participação coordenada, financeira e política. A organização nessas associações também facilita entendimento entre as próprias empreiteiras: as maiores conseguem as obras, enquanto as menores são beneficiadas pela sublocação dessas intervenções — aponta.

Com o fim da ditadura e a transição para o regime democrático, Campos avalia que houve uma mudança na estratégia das empreiteiras, mas com a manutenção do objetivo principal: manter o poder político. Durante o regime militar, com os partidos enfraquecidos e o Poder Legislativo desvalorizado — o Congresso Nacional chegou a ser fechado —, a atuação era mais próxima ao Poder Executivo.

— As conversas eram com o presidente, ministros, presidentes de estatais. Também não havia tantos mecanismos de fiscalização e controle como hoje — afirma.

Já no período democrático, a atuação política se transformou, segundo Campos.

— O diálogo com os partidos se intensificou, e a atuação voltou-se para o Legislativo. As empresas buscam a aprovação de emendas parlamentares, que podem render recursos para obras, e financiam campanhas eleitorais com milhões de reais — assinala.

De acordo com Campos, a própria atividade das empresas passou por mudanças ao longo dos anos.

— Durante a ditadura, eram muito maiores como construtoras, porque havia mais projetos de infraestrutura. Com a mudança de contexto econômico, houve uma diversificação maior. A década de 90 foi pobre em obras públicas, então a atuação em outros setores foi reforçada. São empresas que têm origem como empreiteiras, mas hoje são verdadeiros conglomerados econômicos — reforça.