Onde está Bete

Sumida por dez dias, viúva de Amarildo de Souza reaparece e retoma sua luta: ‘Agora eu é que tenho que ser pai e mãe’

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Por Clarissa Thomé
Atualização:
ELIZABETE16 Rio de Janeiro - RJ - 17/07/2014 - ELIZABETE/AMARILDO - ALIÁS - Entrevista com Eliza Gomes da Silva, mulher do pedreiro Amarildo da Rocinha, em Macaé norte Fluminense. Foto: FABIO MOTTA/ESTADÃO Foto: Fábio Motta/Estadão

Bete varria a calçada da casa de veraneio que alugou, no bairro humilde de Unamar, em Cabo Frio, Região dos Lagos, quando o carro da operadora de telefonia Oi embicou na Rua Tico-tico. Viu que estava ocupado por quatro homens e percebeu, pelo canto do olho, o momento em que o veículo fez a volta no fim da rua. Os homens uniformizados desceram e apontaram para os fios, como quem encontra um defeito. 

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Um deles se aproximou: “O telefone da senhora está com problema?”. Ela respondeu que não, entrando em casa. O homem avançou e com o pé a impediu de fechar o portão. Pediu com paciência: “Bete, para de dar trabalho pra gente. A gente tem que andar é atrás de bandido, não é de você”. O policial civil disfarçado punha fim ao “desaparecimento” de dez dias de Elizabete Gomes da Silva, de 47 anos, viúva do pedreiro Amarildo de Souza, de 43, torturado e morto por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora da Rocinha, em julho do ano passado, segundo investigação da Polícia Civil.

“Você não consegue enterrar seu marido porque eles não acham o corpo. Mas você sai um pouco para respirar e eles acham você com tanta eficiência”, ironiza Bete.

Ela saiu de casa, na Rocinha, na tarde de segunda-feira, 30, com algumas roupas. Não disse aonde ia. A família ligou para os pais dela em Natal (RN), para a filha mais velha em Macaé, norte fluminense, procurou por hospitais e no Instituto Médico Legal. Temiam registrar o desaparecimento na polícia. “Ela é uma mulher odiada por PMs. Não sabíamos o que tinha acontecido”, justifica a primogênita Andrea Gomes da Silva, de 32 anos. 

Bete andava deprimida com a proximidade do primeiro ano da morte de Amarildo, completado no dia 14. Vinha bebendo além da conta, ela reconhece. “É que é um negócio que não tem fim. Eles não falam onde está o corpo. A polícia não matou o Amarildo. A polícia matou a família inteira.”

RIO DE JANEIRO/RJ 18-07-2014 ALIAS Amarildo, após ser levado por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) para averiguação, não voltou para casa FOTO Fernando Frazão/ABr Foto: Fernando Frazão/ABr

O advogado João Tancredo, que defende Bete num processo de indenização contra o Estado, chegou a dizer que ela havia viajado para Cabo Frio para refazer a vida amorosa. Ela dá outra versão: uma desavença com os filhos Anderson, de 22 anos, Emerson, de 21, e Amarildo, de 19, a fez sair de casa. Queria dar um susto neles. “Ninguém me dá bênção, bom-dia nem boa-noite. Agora vão me dar valor”, reclamou. 

O “susto” pode lhe causar mais problemas. O delegado da 11.ª Delegacia de Polícia, Gabriel Ferrando, estuda indiciá-la por abandono de incapaz - além dos rapazes, ficaram em casa Ana Beatriz, de 14 anos, Alisson, de 12, e Milena, de 7. 

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“Não abandonei ninguém. Deixei meus filhos com os irmãos mais velhos. Não podia levá-los porque, se eles faltarem às aulas, não recebemos o Bolsa Família. E eu tenho que sustentar sete com a pensão de um salário mínimo do Amarildo.” Na delegacia, Anderson defendeu a mãe: “Ela deixou os cartões para a gente sacar o dinheiro. Não abandonou ninguém”.

Mais velha de oito filhos, Bete começou a trabalhar cedo como doméstica. Morava com a família numa casa de estuque com um grande quintal, em Natal. Aos 13 anos, engravidou de Andrea. Dois anos depois, veio Jarilda. O pai das meninas era um rapaz poucos anos mais velho que ela havia conhecido num baile e com quem se encontrava contra a vontade dos pais. Para afastar Bete do namorado, a mãe arrumou de mandar a menina para Brasília, onde trabalharia na casa da filha de seus patrões. Assumiu a criação das netas, Andrea, de 3 anos, Jarilda, 1.

Depois de Brasília, Bete mudou-se com os patrões para o Leblon, na zona sul do Rio. Ali se encantaria por um rapaz quatro anos mais moço, alto e magro, que trabalhava no estacionamento da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ) e vendia limão no ponto de ônibus. Era Amarildo.

Os patrões não queriam que ela se envolvesse com “favelado”. Amarildo teve que ir ao apartamento deles, oficializar o namoro. Os patrões de Bete subiram a Rocinha para conhecer a família do pretendente. Todo mundo trabalhador. Aprovaram. “Aí a gente fez a vida. Morou primeiro no barraco de madeira da mãe dele. Depois que ela morreu, ele derrubou e fez de alvenaria. Ele era a coluna da casa. Não me faltava nada.”

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Tiveram seis filhos e moravam todos juntos num barraco de um cômodo e um banheiro. Amarildo era conhecido pela força - carregava como poucos dois sacos de cimento nas costas - e pela boa vontade com os vizinhos. Fazia bicos, carregando móveis e material de construção Rocinha acima.

Bete acha que foi por isso que recebeu a solidariedade do morro quando Amarildo foi levado “para averiguações” na sede da UPP e não voltou mais. “Fechei a boca do túnel (Túnel Zuzu Angel, junto à Rocinha, que liga os bairros São Conrado e Gávea) e veio todo mundo comigo. Eu nem sei de onde tive coragem de botar a cara para pedir Justiça. Acho que era indignação.” Ela não sabe bem como a pergunta “Cadê Amarildo?” se espalhou pelo País, nas manifestações iniciadas em junho, mas agradece a solidariedade. “É que ninguém aguenta mais a violência policial”, aposta.

Bete precisa saber, agora, o que fizeram com os restos mortais do Amarildo. “Preciso dar um ponto final nisso. Eu acordo de madrugada e me pergunto: será que deram pra cachorro comer? Será que enterraram? Queimaram com pneu? A Justiça é muito lenta. Como é que não obriga esses policiais a falarem o que aconteceu?”

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O início da procura de Bete encerrava a busca de Andrea. Criada pelos avós, sabia por cartas - que pararam de chegar aos 10 anos - que a mãe morava na Rocinha, tinha dois filhos e era casada com um homem chamado Amarildo. Aos 22 anos, Andrea se mudou para Macaé, cidade em que a população cresce três vezes mais rápido que a média nacional por causa da indústria do petróleo. Seguia os passos de Bete: era babá. E vinha com a missão de localizá-la. “Meus avós achavam que ela estava morta.”

Andrea se formou em mecânica e pretendia trabalhar embarcada em plataforma. O sonho foi interrompido com o aviso de que esperava uma bebê com síndrome de Down, Jamile, hoje com 3 anos. Empregou-se numa clínica, como secretária.

No Rio de Janeiro, duas descobertas: Macaé era longe da capital, ficava a 190 quilômetros; e a Rocinha é um mundo. “Meus avós sempre ligavam querendo saber se eu já tinha encontrado minha mãe. Mas era muito difícil. Eu prestava atenção a todas as matérias sobre a Rocinha, liguei para a Rádio Comunitária, tentei a associação de moradores, pedi ajuda para programas de rádio, mas não adiantou.”

Uma reportagem sobre o desaparecimento de Amarildo deixou Andrea em alerta: o nome era o mesmo, mas quantos Amarildos moravam na Rocinha? Tensa, viu as entrevistas do irmão, Anderson, e da sobrinha do pedreiro, Michele. Quando apareceu Bete, deu um pulo do sofá: “É a minha mãe!”, gritou. “Eu não tinha foto dela, mas ela é igual aos meus tios que ficaram em Natal.” Poucos dias depois, o reencontro. “Eu só não imaginava que tinha seis irmãos.” O programa Encontro com Fátima Bernardes trouxe os pais e a segunda filha de Bete para passarem um tempo no Rio. “No meio da tragédia, a gente encontrou alegria”, diz Andrea.

Ela faz força para que Bete se mude para Macaé. “Aqui ela não bebe, fica bem. Minha filha adora a avó. Minha mãe merece um recomeço. Precisa voltar a ser feliz. Ela não vai esquecer nunca o que aconteceu com o Amarildo, mas precisa retomar a vida.”

No início, Bete relutava com a ideia de deixar a Rocinha. “Se eu não gritar, vão esquecer. E vou gritar até a voz sumir. Eu não vou sossegar enquanto não achar o corpo do Amarildo. Eles têm que me dizer o que fizeram.” Agora, já aceita a mudança. Está com a filha mais velha e a caçula, Milena, em Macaé. Fala em procurar escola para os menores.

É que a vida está muito difícil na Rocinha, ela conta. Todos os lugares a fazem lembrar que perdeu o companheiro. Os policiais também não a deixam em paz, diz. “Onde vou, me chamam de vagabunda, safada. É sempre uma piadinha, um deboche - ‘Achou o Amarildo?’”, conta ela, que já foi detida por desacato em uma manifestação.

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O pior é o que fazem com os filhos, afirma Bete. Emerson já foi detido por desacato. Outro dia, Ana Beatriz andava na rua quando ouviu de policiais: “Já levamos o Boi, agora vamos levar os peixinhos”, uma referência ao apelido de Amarildo. “Seguimos a vida aos trancos e barrancos, mas nunca fizemos nada de errado. Os meninos estudaram até a sétima série, nunca deixei que se metessem com o que não deviam. Achava que uma morte violenta dessas podia até acontecer com outras pessoas, mas nunca com o Amarildo. Não consigo aceitar que não vou enterrar um homem trabalhador.”

Neste ano de procura, um dos momentos mais difíceis que Bete viveu foi enquanto esperava do lado de fora de uma audiência em que 25 policiais acusados de tortura e ocultação de cadáver prestaram depoimento. Ouviu tudo. “Eu sei o que fizeram com o Amarildo. Os policiais disseram que, por 40 minutos, ele deu gritos aterrorizantes. Colocaram ele dentro da água e deram choques elétricos. Sufocaram ele com um saco na cabeça. Depois o major enrolou ele na capa da moto e passou por cima do contêiner, que estava sem a cobertura. Se eles falam tudo isso, por que não falam onde está o Amarildo?”, insiste.

Quando Bete “sumiu”, os filhos se apavoravam. Milena chorava. Queria saber se “aconteceu com a mamãe o que fizeram com o papai”. Naquela segunda-feira, 30, Bete sacou o dinheiro do Bolsa Família e fez compras no sacolão. Teve ajuda de uma nora para guardar as compras. Pegou um ônibus na rodoviária e decidiu lá o destino: Cabo Frio, a 155 quilômetros da capital. Andou pelas ruas de Unamar até escolher a casinha em que ficaria, por R$ 400, à beira da praia, “comendo camarão e caranguejo, dormindo a noite inteira”.

“Mas é como se eu fosse uma celebridade. Não conheço os outros, mas os outros me conhecem. Um dia, um rapaz disse: ‘Tu não é a mulher do Amarildo? A Civil tá te procurando no Rio’”. Bete levou um susto. E acha um exagero a investigação por abandono de incapaz. “Éramos uma família com pai, mãe e filhos. Agora eu é que tenho que ser pai e mãe. Tive oito filhos. Nunca abortei nenhum. Nem pensei nisso. Como é que eu ia abandonar eles, ainda mais depois da morte do Amarildo?”

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