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Leonardo Sakamoto

Um governo que ataca alunos e professores não fez a lição de casa

Leonardo Sakamoto

21/11/2015 16h48

Ritinha passava a madrugada encadernando sacos de papel de pão e apontando lascas de carvão, que servirão de lápis, para seus alunos da manhã seguinte. Ela sozinha dá aula para 176 pessoas de uma vez só, do primeiro ao nono ano, e perdeu peso porque passa seu almoço para um dos estudantes mais necessitados. Ela usa ripas de madeira de demolição, potes de azeitona usados, pregadores de roupa e, claro, cordas de sisal para dar aulas de química ao ensino médio. Ritinha, deu um depoimento emocionante para a TV, dia desses, dizendo que, apesar da parca luz de candeeiro de óleo de rato estar acabando com sua visão, ela romperá quantas madrugadas for necessário porque acredita que cada um deve fazer sua parte.

Já Joãozinho comia biscoitos de esterco com insetos, paezinhos de lama seca e vendia ossos de zebu para sobreviver. Mas não ficou esperando o Estado, nem seus professores lhe ajudarem e, por conta, própria, lutou, lutou, lutou, andando 73,5 quilômetros todos os dias para pegar o ônibus da escola e usando folhas de bananeira como caderno. Hoje, é diretor de uma multinacional.

Ritinha e Joãozinho são velhos personagens fictícios deste blog (não precisaria explicar, mas a educação anda mal por aqui) e simbolizam a construção de um discurso que joga nas costas do professor e do estudante a responsabilidade pelo sucesso ou o fracasso das políticas públicas de educação. Aquele aquele papinho mandrake, mas vazio, de que os alunos podem conseguir vencer, com esforço individual e apesar de toda adversidade, "ser alguém na vida". A exibição constante da história de Joãozinho passa uma mensagem do tipo "se não consegue ser como Joãozinho e vencer por conta própria sem depender de uma escola de qualidade e de um bom professor, você é um verme nojento que merece nosso desprezo".

Esqueçam o desvio do orçamento da educação para pagamento de juros da dívida, esqueçam a incapacidade administrativa e gerencial, o sucateamento e a falta de apoio para a formação dos profissionais, os salários vergonhosamente pequenos e planos de carreira risíveis, a ausência de infraestrutura, de material didático, de merenda decente, de segurança para se trabalhar. Esqueçam os projetos impostos de cima para baixo que fecham escolas e desfazem comunidades escolares. Esqueçam bombas de gás lacrimogênio e balas de borracha contra professores que se manifestam.

Ritinha e Joãozinho são alfa e ômega, início e fim, responsáveis por tudo.

Os mesmos que querem um Brasil de Ritinhas e Joãozinhos repetem bobagens como "a pessoa é pobre porque não estudou ou trabalhou". Acham que basta trabalhar e estudar para ter uma boa vida e que um emprego decente e uma educação de qualidade é alcançável a todos e todas desde o berço. E que todas as pessoas ricas e de posses conquistaram o que têm de forma honesta. Acham que todas as leis foram criadas para garantir Justiça e que só temos um problema de aplicação. Não se perguntam quem fez as leis, o porquê de terem sido feitas ou questiona quem as aplica.

Uma educação de baixa qualidade, insuficiente às características de cada lugar, que passa longe das demandas profissionalizantes e com professores mal tratados pode mudar a vida de um povo?

A verdade é que uma mudança real e profunda na educação no Brasil não será feita por um Estado mínimo apoiado em escolas particulares, sonho de uma parcela da sociedade que pede "Mais Educação", mas tem orgasmos múltiplos quando vê professores apanharem na rua ao protestarem por melhores condições e alunos serem cercados pela polícia por ocuparem suas próprias escolas.

Mas essa mudança causa calafrio em muita gente que, na dúvida, prefere um país sem futuro do que um futuro que não possam mais controlar.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.