Judas e o ponto sem retorno

Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros; que vos ameis uns aos outros assim como Eu vos amei. Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros. Jo 13, 34-35

 
 
 
A eminência da celebração da Páscoa, quer para crentes ou não crentes, é a notícia desta semana… Não é recente, já lá vão uns milénios, mas ainda é notícia - Coisa rara! -, seja porque nela está a origem e o sentido da fé dos crentes, seja porque há férias no meio escolar ou um fim de semana maior e com iguarias tradicionais para quase todos.

 

Nesta quinta-feira da semana santa, primeiro dia do tríduo pascal, a Última Ceia é o lugar onde quase tudo se passa, onde a morte é vencida ainda antes da madrugada da ressurreição com a instituição da Eucaristia, nela as barreiras do tempo e do espaço são quebradas e superadas.

 

Mas nessa noite, durante a ceia, há um conviva que sempre me desinquietou: Judas Iscariotes! Nunca consegui perceber quais os seus motivos. O dinheiro? A desilusão da descoberta de que não se tratava do messias que ele esperava? Mas a questão mais inquietante sempre foi: porque é que, tendo sido desmascarada a sua intenção de trair Jesus, durante a refeição, não se arrependeu, não voltou atrás? Era uma boa oportunidade… E por último, porque é que os primeiros cristãos não omitiram este pormenor bastante embaraçoso para todo o grupo? Ou então, porque não foi afastado do grupo por Jesus? Mais ainda, porque é que o escolheu?

 

A possível resposta talvez possa começar precisamente pela última questão, o verbo escolher ou eleger é uma palavra-chave na história bíblica e, tal como na aliança da primeira Páscoa, Jesus sabia que o devia amar até ao fim, para atestar que a escolha de Deus era irrevogável. Na mais opaca noite do ressentimento e do ódio, Ele manifesta o brilho extraordinário do amor de Deus. Quanto ao resto, o porquê, os motivos de Judas, nada nos é dito nos evangelhos. Penso que são tão discretos quanto aos motivos de Judas porque não querem satisfazer a nossa curiosidade, mas sim conduzir-nos à fé. Eles não revelam o abismo de trevas do drama de Judas, mas revelam a insondável e incompreensível profundidade do amor de Deus.

 

No fundo, um pouco de Judas talvez todos tenhamos, eu não atiro a primeira pedra. O sabor amargo da traição, e não me refiro a quando somos traídos, mas quando somos sujeitos da ação, é desolador, pois, ainda que ninguém mais o saiba, corrói por dentro, sufoca o melhor de nós, leva-nos a duvidar se merecemos os amigos ou até a vida. E quanto mais profunda se torna a dor, mais solitárias se tornam as decisões, mais relativos se tornam os compromissos, e mais fácil é trair novamente.

 

Um percurso que desumaniza e quase nos convence que é tarde demais, um ponto sem retorno: as vezes em que traí a inteligência do outro ao não lhe dar crédito algum, as vezes em que traí a amizade do amigo ao preferir ficar no sofá, as vezes em que traí o meu tempo usando-o de forma irresponsável, as vezes em que traí o amor por medo/comodismo de me dar, as vezes em que traí um compromisso assumido, as vezes em que traí os meus sonhos ou projetos… Parece que, a qualquer momento, o mundo nos vai cair em cima.

 

Judas talvez tenha feito este caminho sem rumo, mais por fuga que por opção. Mas, consciente ou inconscientemente, essencialmente, Judas duvidou do poder do perdão e recusou-se a abrir-se a ele: a oportunidade existiu nessa última ceia, mas afastou-se para um ponto sem retorno.

 

Perdoar é um ato de amor, mas ser perdoado é ter a humildade de abrir-se novamente ao amor, de conviver com os limites e as falhas, é sair da nossa autossuficiência e aceitar confiar outra vez sem ressentimentos, preconceitos ou medos do que poderão pensar de nós.

 

Páscoa é passagem, é vida nova! Páscoa é inverter este percurso rumo ao nada e a ninguém e encetar um novo caminho de volta ao melhor de nós. Por um lado, é saber que qualquer relação de amor deixa uma porta aberta à vulnerabilidade, à possibilidade de sermos magoados e recordar isso, não fugir a essa vulnerabilidade, já é uma forma de nos prepararmos a perdoar e, por outro lado, é percebermos a importância da humildade de pedir perdão e aceitarmos o perdão oferecido como nova oportunidade para renascer.

 

[Imagem: Leonardo da Vinci, Última Ceia]

Paulo V. Carvalho

Cronista.

Licenciado em Teologia. Pós Graduação em doutrina e ética social. Mestrado em Informática Educacional. Especialização em Educação Especial. Professor. Gosta de desafios.

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