segunda-feira, 30 de setembro de 2013

POR UM FIO

(ONZE POEMAS E UM ACALANTO PARA MEU PAI)













                                        Para minha mãe.
                                        Para Daniel Chaves, pelas armas.


Do not go gentle into that good night,

Old age should burn and rave at close of day;
Rage, rage against the dying of the light.

(…)

And you, my father, there on the sad height,
Curse, bless, me now with your fierce tears, I pray.
Do not go gentle into that good night.

Rage, rage against the dying of the light.



Não entres nessa noite acolhedora com doçura,
Pois a velhice deveria arder e delirar ao fim do dia;
Odeia, odeia a luz cujo esplendor já não fulgura.

(...)

E a ti, meu pai, te imploro agora, lá na cúpula obscura,
Que me abençoes e maldigas com a tua lágrima bravia.
Não entres nessa noite acolhedora com doçura,

Odeia, odeia a luz cujo esplendor já não fulgura

(Do not go gentle into that good night.
Dylan Thomas - Tradução de Ivan Junqueira)






1

Por essas calçadas caminha
um homem. Triste, ninguém
ninguém o nota ou se importa


Os olhos no chão procuram
as  pedrinhas da sua infância.
Quem dera chutá-las agora!


Vai ao encontro da morte
não da sua, mas de seu pai.
Por estas calçadas caminho.


2

QUARTO 713


Abriu a porta,
                                   nada mais esperava
sabia dos olhos
                                   e da consciência baços
por aquela senhora
                                   com quem marcara um encontro


Mas entreolhos o pai
                                   num esforço de luz
que os olhos já não tinham, sorriu
                                   e aquela sombra
num canto recolheu-se ressentida.


Mas ainda está a espreita
                                   a velha puta traiçoeira.


3

Sua vida por um fio fino,
mantém em suspense as nossas.


4

O velho leão de letras ainda luta!
As garras afiadas em lixas insanas
cortam a face da velha pantera, puta


traiçoeira. Ela se afasta, temerosa,
porque a fúria criativa, mesmo cinzas,
é mais forte do que ela, maldita fera.


5

 A vida por um fio
os dias por um fio
de navalha, falham palavras
versos frases cambaleiam
nos próprios ecos, caleidoscópio
de vozes fragmentadas
de vidas fragmentadas.
                                   Nada faz sentido


A vida por um fio
os dias por um fio
que corta o que afia
a agulha que borda o fio
desta história cujo final não sei.
Ou sei. O afasto ou aproximo,
conforme fio
no que a vida me ensina


Só não ensina como se fia
este Risco do Bordado.


6

Estranho, Velho Leão insano,
vê-lo assim, seu carão infinito
agora murcho e sem bigode.
Esses tubos nada metafóricos
trespassando sua garganta
sem significado, significam a vida


Estranho, Velho Leão insano,
vê-lo assim, só, seus olhos baços
que souberam como poucos brilhar
e brincar de Deus, inventando gentes.
Insano, sim, é como o chamo, insano,
ninguém brinca de Deus impunemente


Onde estão Fortunato, Capistrano,
Terezinha Virado? Persona libertou-se
da pessoa, as personagens ganharam vida,
filhas libertas do criador. Está só, tão só,
velho, apenas seus filhos carnais o visitam,
muito tão só, personagem de si mesmo.


Estranho, Velho Leão insano
(e estranha esta palavra: “insano”
contrária a são, mas que hoje o salva
força fúria da fome de vida). E Rosalina?
Não, ela não, esconjuro sua visita, dona,
com essa sua arte de parar relógios.


Olho esse homem e choro, ele
que ganhava a vida (e a perdia)
inventando gentes, riscando destinos,
homem que num insuportável silêncio
de esgares, parece ainda criar e nos dizer
da infinitude do homem, da finitude da Morte.


Esse homem?
É meu pai.


7

Olho seu rosto,
me é tão conhecido,
pende do corpo frágil
que o sustém agora.


                                   Lembra meu filho
longes embora no espaço e no tempo.


Lembra, talvez por ser eu
o vínculo, esse vínculo... não,
não adjetivo, não substantivo,
porque as palavras


                                   hoje são frágeis
perigosas, mesmo se necessárias


Olho meu filho,
- e a cada dia o conheço -
é vê-lo, e entristeço,
talvez você não viva o menino


que logo ele já quase não é
iniciado no tempo e no espaço


O vejo, talvez por ser eu
o elo, a ponte, o liame.
Mas se estou entre vocês
não estou no meio,


pois me envolve
o todo que somos, o todo necessário.


Somos o todo,
todos amálgama

8

Imaginei que você enganaria essa senhora
(não digo o nome, não é pudor, mas cautela)
com  as artes e as manhas de Sherazade.


Mas não, a enfrenta com a fúria de um Hamlet.


9

 Falávamos de pessoa e persona,
suas dissonâncias
                                   seus silêncios mútuos


Mas esquecemos de falar, pai,
deste quarto, canto branco
                                   em que elas se fundem


E em angústia e medo
                                   me confundem


10


                         Rage, rage against the dying of the light.
                                                     Dylan Thomas
           
CORO:


- “Um fim! É preciso um final!
Todo poema precisa de um fim!”


- Não este.
                        Não haveria recomeço.


Toco, cauteloso, sua calva dura
seu crânio esculpido em angústia
e pânico. Bom tocá-lo assim, quente,
como quem já não teme ou pressente.


Enlaço meus dedos nem tão jovens
nos seus cabelos ásperos de brancos
como você talvez nunca fez comigo, penteio
a fronte onde ainda outro beijo consigo


- “Um fim! Ora, é preciso um fim!
Toda história terá um fim!”


- Esta não,
                        deixemos assim...


Outro beijo, não aquele de adeus
que quase dei, mas este que toca
o perfil cavado de efígie esquálida,
despida de adereços com que iludimos


o tempo: os óculos – ainda serão úteis?
O ictus da arcada frouxa dessa boca
que tanta vez explodiu violenta e vital,
e agora cala, só seu olhar inventa a fala.


- “Um final! É preciso um final!
Todo poema há de ter um fim!”


- Não este,
                        não haveria recomeço.


Esse seu olhar outrora tantas vezes não
agora é sim, e chora, chama por mim.
É nuvem, mas fala, me reconhece filho,
seu filho, e da sua angústia, agora minha.


Esse olhar que em toda sua vida traíra
o veneno da criação, o furor dos tempos
imemoriais, hoje, esse mesmo olhar o salva
porque com ele ruge a raiva da sua santa ira


- “Mas é preciso um final, ora, um final!
a chave com que ele fechava toda história!”


- Não esta, por favor,
                        afinal, nunca mais abriria nada”.


Quase beijo essa sua boca trêmula
e choro no tremor das mãos (sequela
da luta com palavras, “luta mais vã”)
luto, procuro, mas não encontro tal fim


Deixarei ao abandono estes versos
que se percam os poemas sem fim
eis que vi a vida por um fio, e silencio.
Deixo palavras flutuarem no precipício


- “Mas e o fim? É preciso um fim!
Não há história sem fim!”


Eu sei.
                        Melhor deixar assim.


Volto, nem sei se feliz ou triste
(há tanto ele calara!), mas voltarei
aos velhos temas, a trama da vida
foi demais para mim, e minha poesia.


                                               Deixo estes versos
                                               entre silêncios e agonia.
                                               Prefiro assim.


Assim recomeço


11


Vem, pai, retorna cansado da quarta ou quinta
margem, onde quase se perdeu de nós,
desatracando na direção do mar. Quase.


E é com a sede dos desertos que me chamam
esses olhos que me atravessam e atravessam
quartos paredes e distâncias. E o impossível.


Como me chamavam (eu entendia, e eu vinha,
conheço seus sinais), os mesmos olhos aflitos
quando acenavam da terceira margem. Sofríamos


Talvez pelo tanto e igual silêncio da quarta margem
é que me olha outra vez com a avidez de quem vive,
e me chama, como me chamava meio às chamas.


Que importa, agora, se estamos todos aqui, pai,
nas margens reais, ou quase, do fio desta vida?
Estamos todos em flores, filhos e personagens


mesmo os que hoje não nada mais lhe dizem.
Que importa agora? Aporta nestas margens
porque era de fúria o oco da canoa, e resistiu


era de aço, o arco da vida, e tenso ao limite, resistiu,
fez-se voo. Somos todos, filhos e personagens, flores,
mas flores vivas. Bem vivas. E acenamos. Aceno.


Vem, pai.


12 - ACALANTO






Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling,
By the grave and stern decorum of the countenance it wore,
"Though thy crest be shorn and shaven thou," I said, "art sure no craven,
Ghastly, grim, and ancient raven, wandering from the nightly shore.
Tell me what the lordly name is on the Night's Plutonian shore."


Quoth the raven, "Nevermore."

                                                      The Haven
                                                  Edgar Allan Poe


E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."


Disse o corvo, "Nunca mais".

                                                         O Corvo
                                                    Edgar Allan Poe
                                          Tradução Fernando Pessoa


Rompeu-se o fio, pai
não o prenderei mais
com minha esperança


nossas mãos ainda presas
- a sua esfria lentamente -
se despedem sem querer


não há vontade em seus dedos,
e a dos meus são agora inúteis.
Se despedem, você se desprende


na direção do mar, gesto silencioso.
Já não há terceira ou quarta margem
nesse rio sem rumo onde você vai.


Eis enfim o final:


                                                                       Nunca mais.





Não sei que forma usar, se alguma é possível. Não por uma questão de estilo, parece óbvio, não há estilo possível ante a morte, a morte real, assim como é difícil por sob forma o desatino.


Terceira e quarta margem, hoje as descubro tão próximas.


Não sei que forma, por desespero. 


Deixo que meus dedos fluam
no rumo do que é impossível fluir,
caminho entre palavras e paradoxos,
um labirinto sem fio ou Ariadne.


Você dizia que a diferença entre poesia e prosa era só questão de ritmo (nunca concordei), então, qual o ritmo possível destes dias dodecafônicos, destes dias dissonantes e sem forma?


Lembro-me, e as lembranças se embaralham, sem ordem cronológica, sem se preocuparem se são ou não reais. O que importa? Já há realidade demais na sua ausência. 


Nesse volteio de imagens que se substituem veloz e intensamente, lembro-me, eu ainda era jovem, jovem demais talvez, sabendo que meu ritmo rumava para poesia, você me deu para ler “Procura da Poesia”, do Drummond, onde, em lição de carpintaria, ele ensina: 


Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia
(...)
A poesia (não tire poesia das coisas)
elide sujeito e objeto”.


Qual forma?


Deixo a mão desaguar sobre as possibilidades.
e ela sempre retorna à frase, ao verso fatais:
                                   Nunca mais.
                                  

Palavras que desabam como pesadas cortinas, acabou-se o enredo (quase disse a farsa, não seria real no seu caso, ao contrário, se alguém sofreu intensamente a própria realidade foi você).


 Acabou-se o enredo, eis o final,
a Indesejada das Gentes sorri,
diz, com rara, crueldade demais:


                                                                       Nunca mais.


Pai, quase cheguei a escrever o trecho dos Coríntios, quando tudo nos fazia crer que você venceria essa velha puta:


 Ubi est, mors, uictoria tua? (1Cor 15,55)
"Onde está, ó morte, a tua vitória?"




Não fiz tal desafio. Não tive coragem.

Ainda bem, soaria agora estranha ironia. O faço hoje, quando a ironia é impossível, já não há desafio, e a pergunta carrega em si a própria resposta.





Vejo você partir e não sei sequer chorar (sei que farei isso mais tarde, agora, por exemplo, enquanto escrevo, ou quando estivemos a sós).





Nunca mais.

Tudo se veste de nunca mais.



As coisas mais prosaicas, coisas que nada têm com você, repetem: nunca mais, nunca mais.



Volto para casa, depois de deixá-lo, venho nesta estrada tão conhecida.
Tanta vez passei e passarei por ela, desde de que escolhi, rumo contrário ao mar, aquela margem de rio para ver crescer meu filho. Hoje, está diferente, olho para o asfalto e ouço: nunca mais.
Nunca mais passarei aqui outra vez, após vê-lo. Como as águas daquele rio, será talvez a mesma e outra estrada, a mesmas curvas que regem seu ritmo, e que parecem se repetir, mas são outras, a mesma estrada, mas hoje ela transborda de você, porque há, em cada curva, a frase, o verso, ...ai:


“Nunca mais”.


Horácio. Lembro, lembrei-me dele agora, vendo um desses andarilhos da estrada, ambulatoriamente perseguindo a vida de olhos vidrados, sempre indo ou vindo de lugar algum, romeiros do nada.


Horácio, não o poeta, mas o doidinho da rua da minha infância. Como vocês se entendiam! E isso me assustava.


Horácio, que estranhos versos lia nos papéis que chutava e que voavam rente ao chão?
Lixo para alguns, eram talvez a literatura da loucura,


Seu próprio enredo em branco.
Depois esbravejava contra postes
gigantes, Quixote sem Cervantes.


Como vocês se entendiam! Sempre uma nota na mão, quando se encontravam, que ele recebia sem sorrir, mas o olhar cúmplice denunciava aquela inusitada amizade, entre o escritor e a personagem jamais criada. Nota, de resto, inútil, nada que verdadeiramente interessava a Horácio a ele faltava, água, um prato de comida entregue de qualquer muro. Sempre aparecia alguém, nem que fosse para chamar o irmão, entregador do armazém, quando os surtos ventavam violentos do norte, e Horácio sumia por um tempo.
Um Botafogo mais amável, mais ameno. Mais humano.
Mais tarde, também entendi Horácio. Com ele e com o tempo aprendi que a loucura, quando sob calmaria, é mansa, embora profundamente angustiada. Uma noite, já adolescente, eu namorava a solidão no escuro da praça, Horácio se aproximou de mim, apontou para o prédio recém-construído, onde antes havia a casa abandonada dos medos da minha infância, e mastigando palavras, misturando frases, contou-me de uma casa, de uma mulher, de uma surra da polícia. E o passado desconhecido daquela casa demolida revelou-se das brumas da loucura, e o de Horácio ainda mais se enevoou. Passamos a ser, desde então, três amigos. Estranha amizade. Uma puta, não sei se amor, loucura ou morte, uma surra, todas fatais, e me ele disse:


Nunca mais.  
Esta frase, este verso que só hoje, mais de quarenta anos depois, ganha sentido. E o perde.


...


Deixo, pai, seu corpo confinado nessa fatia de chão que sequer é sua, e partirei para outras terras ao norte. Sei que você não se importará que eu vá ao mundo, pois me ensinou, lição última, quando se agarrava com ânsia, força e ódio ao fio que a nós o prendia, que a vida é para ser comida a colheradas. Com prazer, ódio e dor. Vida, enfim.


Por isso vim.


Olho esse rio do norte, um vento frio gela e transforma lágrimas em lâminas salgadas, que tento disfarçar, cortam meu rosto e esta cidade imensa, exagerada, tão diferente de Duas Pontes! Mesmo assim, você está nela, não me pergunte como, mas está, vestido de “nunca mais”.


Que forma?
Forma nenhuma, não há forma possível ante esta curva de rio, rio frio do norte


lhe é estranho.
Porque o traz?


Talvez pela estranheza
talvez pelo silêncio

Porque onde há silêncio
o vejo, ali você está.
                                  

                                   Nunca mais.


Tudo que leva ao silêncio me leva a você. 


Um rio, uma rua, um quadro. O silêncio melancólico de De Chirico, “A Melancolia da Partida” da “Gare de Montparnasse, essa despedida...


Silêncio,
melancolia e silêncio


Escrevi, um dia:
"O silêncio é horrível",


Depois, outros tempos, outra vida, corrigi:
"O silêncio é urgente, para melhor alumbrar a beleza
Plena e transcendente da mulher que amo"


O que é, afinal, o silêncio?
Só o que restou de nós.


"The rest is silence"


Tudo que leva ao silêncio me leva a você. Nele, em e no silêncio, reconstruo a sua imagem, não por acaso, exatamente da forma como você construía seus romances: num fluxo de consciência e através de monólogos interiores, e só nos resta, além do silêncio, o onírico a reconstruir.


Sonhos.


Feitos, desfeitos,
talvez refeitos, um dia.


Sonhos demais.


Nunca mais.Sai o trem da estação de Montparnasse, onde sequer estou - ao contrário, é outro país, outro continente - apenas um quadro de De Chirico, que soa ausente.
Para onde vai?


Vai o trem, volta no tempo,
volta trem, não há outro rumo
senão voltar. Ir, para voltar.


Montparnasse Paris, 
Belo Horizonte Monte Santo
Patos pathos Duas Pontes


Vejo a cidadezinha
onde sua alma habitava,
vejo a Casa da Ponte.


Onde todo menino se iniciava.
Pai, me ensina, é urgente,
como me iniciar nas coisas da morte?


Puta, que goza e nos escarra a face.
Me ensina, pai, é urgente, peço-lhe,
como traçarei este Risco do Bordado?


O trenzinho volta, foi para voltar
apenas você e seu trem, máquina
maldita, só partem, pai. Nunca mais.


Há só silêncio, sua mão – tão fria
tão quente – já não me pode falar
tenho que descobrir, sozinho


o rumo desse trem que não admite atrasos.


...


Dizem que a morte nos causa um imenso vazio. Mentira. Ao menos assim não sinto. Sua imagem transborda em mim, logo, não há vazio algum. Talvez as coisas é que se vistam de um vazio infinito, porque perdem significado. São coisas impossíveis, como é impossível é o mundo objetivo, que irremediavelmente se esvazia. Coisas demais, coisas fatais.


Nunca mais.


O que dirão suas personagens?

Se é que dirão alguma coisa, talvez tenham ficado atônitas, talvez não, o que é mais provável, pois ganharam vida própria e não conhecem ou não se importam com o destino de deus, de quem as criou, dando-lhes vida. Ficam em estado escuro de livros, em estado de personagens, até que algum leitor as liberte e as reinvente, e assim o reconte, não o pai que eu conheci, mas outro que imaginam, e que me é estranho. Ou não.

Você sabia que o autor, ante a obra, nada importa (e com isso concordo) é apenas “um leitor privilegiado, e não dos melhores”, mas sempre haverá um ou outro leitor, que entre uma página e outra, entre um capítulo e outro, baixará o livro e fará a fatal e indesejada pergunta: quem foi esse homem? E você ressurgirá, múltiplo como sempre foi, onde sempre esteve, em cada pessoa e em a cada persona.

Um leitor, um singelo e indiscreto leitor o reviverá e a seus múltiplos. Melhor assim, este era seu melhor traço, seu ser múltiplo, “trezentos, trezentos e cinquenta”, algumas vezes múltiplo em excesso.



E foi um leitor a talvez mais emocionante presença que vi em sua missa... sei, não ligaria para isso, de missa, quase certo que não, se sentiria mesmo incomodado. Mas mesmo sabendo que não é a melhor hora de confessá-lo, devo dizer-lhe, pai: não foi para você essa missa, foi para nós, que aqui ficamos com a sua ausência.
Foi um leitor, uma leitora, mais precisamente.
Não foi a presença de sua mulher, “nossa mãe”, como você a chamava, ela estava presente, claro, e me emocionou, assim como penso que a emocionei, lendo para e sobre você; nem a presença comovida dos meus irmãos (estavam todos lá? não lembro); ou a minha presença. Estas, cada um carregou consigo os seus motivos, ou não, suas lembranças, cada um, em devaneio, lembrou de suas histórias, como também seus amigos, quase todos agora como você, mortos. Estávamos ali para sentir a sua falta, e nos consolarmos. Mas havia um vínculo quase carnal entre nós, mesmo entre você e seus amigos mortos.
E sua leitora, o que a trazia? Talvez nem fosse das mais profundas, e daí? O que fazia ali? O que buscava? Não sei, ninguém a conhecia, ela saberia? Sei que depois falou comigo: “sou apenas uma leitora, amo os livros do seu pai”. Olhei-a, o que fazia ali? E a abracei, como uma velha amiga.
Depois da missa, deve ter voltado para casa, aberto um livro para conversar com você, imaginá-lo, lembrar, no caso, do não acontecido, exatamente como também o fazemos.
A única diferença é que ela o terá mais presente do que nós, sempre ao alcance da mão.
A única diferença é que, para ela, a frase terrível não soará jamais.


Nunca mais.


As imagens vão e vem, vinham, agora vão apenas, nos desvãos desta tarde de primavera que se recusa a acabar. Sua mão já não segura a minha, e não mais a acaricio, estão fixas, frias, sobre a barriga, entre flores, patética primavera.


Assim acabam as manhãs, assim acabam as tardes e as noites. As estações. Assim acaba a vida, simples e dificilmente.


Pode ir, meu pai, é chegada a hora.


Rompeu-se o fio
não o prenderei mais
com minha esperança


Rompe-se também este fio que ainda nos unia, este fio inútil, pois nada mais prendia, prende ou prenderá. 
Não há mar possível nesta sala amorfa e mal cheirosa, mas o vejo caminhando na direção do horizonte. Tento, mas não consigo evitar o lugar comum, já que de mar falávamos. Sorrio, ainda me resta alguma quase autocrítica, e você quase sorri também.
Sorrio também porque um dia segui um conselho de um amigo, e tenho certeza de que tudo foi dito entre nós. Nada, nada ficou para falar, por isso choro. Mas sorrio.


Rompeu-se o fio
não o prenderei mais
com minha esperança


nossas mãos se despedem
vai na direção do mar, lentamente.


Nunca mais...


É chegada a hora, sei que não me é dado mais retê-lo.
Apenas aceno. Nada digo:


Adeus pai,
Adeus amigo.






2 comentários:

  1. Caro. Rememoração bela e forte como deve ser uma carta ao pai. Na tradição judaica qdo lembramos alguém q partiu complementamos “ q sua alma permaneça atada ao feixe dos viventes” . É o q vc se faz lao recordá-lo para todos nós . Grande abraço

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    1. Obrigado, li, sim, como pode ver, seu comentário, abraço

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