O que é ser “espiritual”?

size_810_16_9_456842564

 

 

Nos meios pentecostais e carismáticos ouve-se frequentemente uma expressão que classifica um dado fiel como sendo “espiritual”. Creio que o termo surge na linha da terminologia paulina, por oposição ao crente denominado “carnal”.

De facto, o apóstolo Paulo menciona e desenvolve a ideia do crente carnal, como sendo aquele que dá vazão aos impulsos da sua carne, sem exercer temperança ou autocontrolo, fruto do Espírito Santo na sua vida, mencionado aos gálatas, sendo o homem espiritual aquele que se deixa conduzir pelo mesmo Espírito. Nessa epístola dirigida aos cristãos da Galácia, aliás, S. Paulo desenvolve bastante esta ideia (5:16-25).

No entanto alguma da doutrina cristã tem sido desvirtuada, do ponto de vista conceptual, sempre que se confunde a conceito de homem espiritual com outras posturas que de espiritual nada revelam.

Vejamos algumas delas.

Ser espiritual não é ser emocional

Muitos confundem a espiritualidade cristã com uma cultura de predominância de expressões e manifestações de carácter emocional. Promover artificialmente as emoções, em setting de culto religioso, corresponde a falar de manipulação de massas, de indução, de histeria colectiva e de outros fenómenos psíquicos de que não há proposta histórico-bíblica. Isto é, a Igreja Primitiva não nos permite tal leitura, a não ser talvez pelas piores razões. É o caso que o apóstolo refere como perigo da aparência de loucura face aos que não são da fé:

“Se, pois, toda a igreja se congregar num lugar, e todos falarem em línguas, e entrarem indoutos ou infiéis, não dirão porventura que estais loucos?” (I Coríntios 14:23).

Note-se que a obrigação primeira do cristão face aos de fora é o bom testemunho:

“Convém também que tenha bom testemunho dos que estão de fora” (I Timóteo 3:7),

e não a loucura aparente, ou sequer qualquer manifestação de poder espiritual.

Ser espiritual não é ser místico

Na realidade o misticismo pode ser considerado uma distorção da espiritualidade cristã. Místico, do grego μυστικός, transliterado mystikos, será um “iniciado numa religião de mistérios”. Por aqui se vê uma óbvia influência gnóstica. Mas a fé cristã inscreve-se no âmbito do “culto racional”:

“Rogo-vos, pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional” (Romanos 12:1,

caracterização com que provavelmente o apóstolo Paulo a quis distinguir do misticismo grego que ainda influenciava fortemente a cultura do seu tempo.

Bem sei que o mesmo S. Paulo refere uma experiência a que poderíamos chamar mística, uma espécie de arrebatamento de sentidos que ele próprio experimentou:

“Em verdade que não convém gloriar-me; mas passarei às visões e revelações do Senhor. Conheço um homem em Cristo que há catorze anos (se no corpo, não sei, se fora do corpo, não sei; Deus o sabe) foi arrebatado ao terceiro céu. E sei que o tal homem (se no corpo, se fora do corpo, não sei; Deus o sabe) Foi arrebatado ao paraíso; e ouviu palavras inefáveis, que ao homem não é lícito falar” (II Coríntios 12:1-4).

Todavia não deixou de ser uma experiência pontual, excepcional e que não foi sobrevalorizada por ele, a ponto de nem sequer se sentir autorizado a descrevê-la:

“ao homem não é lícito falar” (4b).

Segundo Lewis, o místico é aquele que “aspira a uma união pessoal ou a unidade com o Absoluto, que ele pode chamar de Deus, Cósmico, Mente Universal, Ser Supremo, etc.” O que pode ser interessante para os adeptos da Nova Era, mas de cristianismo terá pouco.

A mística distingue-se da religião por se referir à experiência directa e pessoal com a divindade, o transcendente, sem recurso a intermediários, dogmas ou teologia. Acontece que o evangelho apresenta Jesus de Nazaré como Único Mediador entre Deus e os homens:

“Porque há um só Deus, e um só Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo homem” (I Tm 2:5).

Logo, a fé cristã inscreve-se no âmbito duma conversão pessoal a Cristo, nosso Salvador, e não numa ligação intuitiva com a transcendência (William).

Se Jesus Cristo quisesse ser um místico possivelmente tinha-se juntado a uma comunidade do tipo dos essénios, que viviam isolados, nas margens do Mar Morto, e constituíam uma espécie de ordem monástica judaica. Mas não. Andou entre os homens, sempre acompanhado dos seus discípulos mais próximos ou seguido por multidões, e apenas se retirava por um pouco de tempo para ficar a sós, em comunhão com o Pai.

Ser espiritual não é ser santarrão

A aparência de santidade não é de inspiração cristã, mas a santidade sim. A aparência é uma invenção do farisaísmo religioso que Jesus de Nazaré combateu tão frontalmente, e depois dele S. Paulo.

Parecer santo não faz parte do património ético-moral do próprio Cristo. Pelo contrário, Jesus sempre ignorou tal desiderato. Por exemplo, quando se encontrou a sós com uma mulher e ainda por cima samaritana. Ou quando recebia pecadores e comia com eles:

“E os fariseus e os escribas murmuravam, dizendo: Este recebe pecadores, e come com eles”(Lucas 15:2).

Ele era santo mas nunca se preocupou em parecer santo aos olhos do mundo. Bastava-lhe ser. E quem de facto é, não precisa de fingir que é.

A experiência comprova que, quanto mais alguém quer parecer santo, mais pecado tem a esconder, seja lá qual for.

É verdade que somos exortados a evitar a “aparência do mal” (I Tessalonicenses 5:22), mas isso não significa que passemos a fingir que somos o que não somos. O homem espiritual é pela verdade, pois o Espírito que o habita é o “Espírito de verdade”, que o “guia em toda a verdade” (João 16:13).

Ser espiritual não é ser fanático

O fanatismo é um extremismo religioso. Caracteriza-se por uma falta de equilíbrio e uma perda do foco que deve animar o percurso cristão. O extremismo (tal como o fundamentalismo) religioso ou político é sempre mau conselheiro.

Caracteriza-se por uma “devoção incondicional, exaltada e completamente isenta de espírito crítico, a uma ideia ou concepção religiosa.” Mas o espírito crítico é essencial para estabelecer equilíbrios nas várias dimensões da vida.

O fanatismo leva à intolerância para com o outro ou as suas crenças.

Jesus Cristo nunca se mostrou fanático com aqueles que pensavam ou criam de forma diferente. Por isso lidou com judeus, samaritanos, romanos, gregos e gentios em geral, sem discriminação.

Segundo De Luca, “um fanático religioso é, muitas vezes, um indivíduo disposto a lançar mão de qualquer meio para afirmar a primazia da sua fé sobre as demais.” Ora, Cristo não nos mandou a um concurso de fé, ou a um combate religioso, mas sim a anunciar e viver o Evangelho, amando sempre o próximo como a nós mesmos (Mateus 22:39). Só isso.

Podemos então dizer que o homem espiritual é o que vive desta forma, amando a Deus e ao próximo, tal como Jesus ensinou.

 

Fonte: José Brissos-Lino, Salmo Presente.

Deixe um comentário