E QUANDO EU MORRER?

Manuel Vazques Gil*

Em abril de 2014 eu coloquei o Luan na perua escolar. Durante anos eu o levei e fui buscar na escola, conversava com as crianças, os professores, resolvia pendências na coordenação, secretaria, cantina. Meu filho é discretíssimo, nada sai da boca dele: quando lhe perguntava “como foi hoje na escola?”, ele sempre respondia “pergunta pra professora”. Se ele passar um dia na sua casa e eu perguntar como foi, a resposta será “pergunta pra tia”.

Pois um dia eu percebi que havia uma dependência grave entre nós, mas que era minha, não dele. Minhas inseguranças e angústias eram maiores do que seus potenciais. Cortei pela raiz, e dei o controle da escola para ele. Desde então, o mundo não acabou e as ocorrências de frustração que faziam com que ele se isolasse no banheiro desapareceram. Nada deixou de ser feito: a cantina, secretaria, coordenação, direção, só que ele é quem faz.

Sempre que eu tento descrever a importância de acreditar no potencial dos nossos filhos, alguém me fala da angústia da morte: e depois que eu morrer, quem é que vai cuidar dele? Confesso que, embora eu veja a morte de maneira natural, e faça o luto rapidamente, às vezes também penso nisso. Só não deixo que esse pensamento me impeça de viver o hoje e de seguir com o plano de deixar meus filhos voarem. Aliás, é esse pensamento que me leva a estreitar laços com as pessoas e aumentar a família. A proteção tem limites, e o mais claro dos limites é a liberdade alheia.

Eu caminho. Sou um caminhante nato. Minha mãe já me disse que eu não chutava no útero: caminhava. Saio pelas ruas sem destino e, no espaço de um mês, caminho por toda a cidade. Conheço a maioria dos moradores de rua, alguns pelo nome, e pago refeições para os que me pedem. Em troca, peço que me contem suas vidas e escrevo. Há vidas ricas de afetos, vidas de abandono, vidas que valeriam um livro. Sem exceção, todos carregam histórias de vida que surpreenderiam você, mesmo quando morar na rua é uma opção.
Não há autistas entre eles.

Quando cuidamos de alguém que achamos ser mais frágil, dependente, geralmente cuidamos de estabelecer uma rede de proteção, aumentando a percepção do que consideramos “família”. Abrimos mão de pequenos orgulhos e convicções para estabelecer afetos com pessoas que podem nos ajudar.

A chegada da Internet e das redes sociais atrapalhou um pouco isso, porque passamos a nos apoiar em quem pensa como nós, mas que está longe demais para nos substituir. Passamos a desconsiderar pessoas mais próximas, mas que pensam diferente, para nos acalentar em quem nos dá colo à distância. Pior: passamos a fazer parte de grupos que pensam igual a nós, e isso nos dá a sensação de que estamos sempre certos. Trocamos amizades reais, (porque nos falam o que não queremos ouvir), por amizades virtuais, que sempre nos apoiam, mas não nos amparam.

Talvez daqui a algum tempo comece a encontrar autistas na rua.

Quando uma pessoa me diz que precisa lutar para que o Estado cuide do seu filho depois que ela morrer, eu lhe digo que ela tem que rever seu conceito de família, meditar sobre o círculo de amizades que tem formado. 
Sabe você que tenho o projeto “Muito obrigado, amigo”: uma rotina que estabeleci para agradecer às pessoas o que fazem pelo meu filho. Na escola, ônibus, metrô, banco, padaria, supermercado, em todos os lugares onde vou. Porque reconheço que, se meu desejo é que ele seja cuidado, devo agradecer. Não brigo com as pessoas que falam ou fazem bobagens, elas são o que elas são. Revi meu conceito de família.

Quando eu morrer, uma dúzia de pessoas aparecerá para lamentar minha morte e para cuidar do meu filho. Minha única preocupação é dar a ele, hoje, condições plenas de autonomia para que possa voar, agradecer a essas pessoas e dizer que está bem, que o único problema é a saudade. 

Talvez, se alguém perguntar “quer que eu te cuide?”, ele aponte para o caixão e diga “pergunta pro meu pai”.
Sim, eu sei, você vai me dizer que o importante é preparar o mundo antes de você morrer. Até por isso eu lhe digo: é o que tenho feito, por isso o importante pra mim é o agora, que é o único tempo que tenho para mudar o mundo. Não sei se dará tempo de fazer isso amanhã.

Eu caminho. De acordo com minha mãe, há mais de sessenta anos. Ninguém conhece o amor parado no mesmo lugar, remoendo as mesmas angústias. Caminhar liberta. Só caminhando conhecemos o mundo real e aprendemos a amar pessoas reais.

Caminhe também e, principalmente, deixe caminhar. Se fizer isso, sofrerá, como eu sofro, porque conceder a liberdade a quem amamos tira um pedaço de nós. Em compensação, quando morrer, não morrerá, porque ficará marcado na lembrança daqueles a quem deu asas. O mundo ficará mais pobre sem você, mas a vida seguirá mais rica para quem ficar.

Vou caminhar, aproveitar esta manhã escura, de chuva fina. Encontro você na padaria da esquina, eu pago o café.

 

Manuel Vazques Gil é psicólogo tendo consultórios em São Vicente (estado de São Paulo)  e Contagem (Minas Gerais). É pai de 3 filhos (duas moças e um rapaz). Luan, seu filho mais novo entre outras coisas é autista. Tem trabalhado com inclusão escolar de pessoas com deficiência e cuidado de pais de pessoas com deficiência que procuram viver melhor. Para maiores informações abaixo o endereço das clínicas:

 

Clínica na cidade de Contagem (Minas Gerais): Avenida Prefeito Gil Diniz, 585, salas 2 e 4, Centro de Contagem. Telefone: 31-98648 4468

Clínica na cidade de São Vicente (São Paulo):  é na rua Jacob Emmerick, 365, sala 24, centro. telefones: 13-33239795 e 13-99710 0708