Coluna
Fred Coelho Fred Coelho
Fred Coelho, colunista Foto: O Globo

Contratempos

Não sabemos nada do próximo segundo

1. Dois verbos contemporâneos: improvisar e experimentar. Duas práticas inerentes à vontade de ir além (“para fora”, como escrevi na última coluna). Improvisar os dias sem estar preso a noções pré-estabelecidas. Experimentar sem esperar nada em troca além da satisfação da descoberta. Existir com tesão pelo simples risco de estar vivo, improvisando e experimentando. Não sabemos nada do próximo segundo. Viver é acidente, o mundo acaba todos os dias e nunca teremos certeza se nosso momento é o ultimo — ou o começo eterno de tudo que ainda vem.

2. Durante alguns anos (há mais de uma década) eu toquei bateria. E entendi melhor a vida. Entendi que, de alguma forma, tudo dá tempo. Ou melhor, tudo cabe dentro de um tempo. Tive uma pequena bateria montada no escritório de uma casa em que morei e a tocava toda vez que precisava descansar dos estudos para um doutorado em literatura. Lia, escrevia, tocava bateria, voltava para a escrita e assim passava tardes e noites. Descobri que a bateria demanda de nós uma outra noção de tempo e espaço. Seu corpo inventa brechas fora do ritmo cotidiano que nos movemos. O baterista é um criador de micromundos, um fabulador auricular, aquele que conduz a velocidade das ações e marca a passagem dos momentos. De certa forma, escrever é manter uma batida, da mais silenciosa até a mais estridente. Certos textos obedecem lógicas sonoras claras, outros são puro som em improviso. Fazer literatura não é tocar bateria, nem vice-versa. Mas há algo aí nessa possibilidade de conduzir o andamento da vida, há algo aí nesse pulso vital que anima músicas e personagens, há algo aí...

3. Durante esta semana, dois eventos sem conexão alguma ocorrem no Rio de Janeiro. Eles são oriundos de naturezas distintas, são mundos que não se encontrarão a não ser nessas linhas. Mesmo assim precisam desse nó imaginário pois representam duas frentes de VIDA na cidade. Trata-se da vinda de um baterista norueguês com sua orquestra de improviso e da realização de um encontro nacional de literatura cujo tema é voltado para experiências contemporâneas de escrita. Improvisar e experimentar são vetores desses mundos paralelos que se instalam para que possamos seguir transformando as coisas por todos os lados. São ações coletivas e internacionais, movimentando grupos heroicos de organizadores e produtores, cujas ações engajam pessoas na música, na arte, na literatura e no pensamento.

4. Amanhã, na Sala Sidney Miller da FUNARTE, o baterista norueguês Paal Nilssen-Love tocara com sua Large Unit, uma orquestra de 14 músicos cujo cardápio sonoro é a improvisação. Com metais, duas baterias, baixo, guitarra, e o acréscimo brasileiro do berimbau de Célio de Carvalho e da cuíca de Paulinho Bicolor, esse time de músicos mergulhará fundo na prática do improviso jazzístico levado ao seu extremo. A orquestra foi montada por Nilssen-Love em 2013 com músicos escandinavos e suas apresentações, ao menos as que assisti no YouTube, não deixam pedra sobre pedra.

Àqueles que perguntam o que tem de diferente acontecendo por aí quando falamos de música, eis um show cuja dinâmica sonora não visa o prazer repetidor da canção de rádio, nem a audição amena de velhos repertórios. Em apresentações de bandas como a Large Unit, cada célula é um novo passo em uma corda bamba de possibilidades. A música de improviso, ao contrário do que muitos pensam, não trabalha com o caos gratuito, mas sim com a precisão do inesperado. Paal Nilseen-Love é um fenômeno físico quando visto ao vivo, pela sua velocidade e pelo seu talento. Alterna leveza e peso na mesma medida, criando mundos sônicos que nos deixam hipnotizados. Com uma orquestra de jazz, percussão e liberdade, ele leva essas forças além. Se com uma dupla como Arto Lindsay, parceiro em diversos shows na Audio Rebel (que está trazendo a Large Unit ao Rio) e no disco “Scracity”(2014), suas apresentações são antológicas, com um trabalho coletivo voltado para uma investigação da música brasileira, será uma experiência para não perder. Não é todo dia que temos entre nós um baterista de escrita épica e experimental.

5. Desde segunda-feira até sexta está acontecendo na UERJ mais um encontro da ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada). Na sua 15ª edição, o encontro torna-se essencial em um momento de tensão e ebulição ao redor dos espaços para o pensamento, a escrita crítica e seus desdobramentos na prática literária. Com o título “Experiências literárias, textualidades contemporâneas”, sua organização afirma um período de transformações para todos que trabalham de alguma forma com as práticas escritas e as diversas plataformas textuais do tempo presente. Debater literatura é, mais do que nunca, pensar o mundo politicamente em tempos de power points rasos e argumentações espetaculosas à flor da pele.

Escrever, hoje e sempre, envolve uma boa dose de experimentação e improviso. Como o baterista, é preciso saber fazer as letras funcionarem no contratempo dos dias.

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