Super-heróis, guerra e o fracasso na política

Teriam os heróis da ficção, tão queridos por nós da tribo nerd, alguma relação com o enferrujamento político que virou rotina nos últimos anos?

Sabe, são tempos estranhos.

Na política, neste ano de eleição, independente de bandeira, vivemos um espancamento ideológico feral, uma sede de protagonismo indecente e uma indignação (simulada ou verdadeira) além de qualquer chance de gerenciamento.

Na contramão, a perspectiva de filmes e gibis espetaculares, incríveis e fabulosos em 2018 só não é maior porque a Disney ainda não comprou a Warner. Algo assim daria margem para, quem sabe, um crossover entre Vingadores e Liga da Justiça… Embora nos contentássemos com um novo bom filme do Superman ou do Batman.

Enfim.  

A incidência simultânea (“Co”, para os íntimos) destes dois fatos, se você me permite chamar assim, (1) o esgarçamento político nacional e internacional e (2) o acentuado sucesso dos bens culturais nerds, provoca uma indagação razoável: teriam os heróis da ficção, tão queridos por nós da tribo nerd, alguma relação com o enferrujamento político que virou rotina nos últimos anos?

Arrisco mais uma: seriam as histórias de super-heróis uma sugestão anti-constitucional, um fator que favorece degradação política?  

Indicados e examinados de mil formas, inclusive por nós, Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons, e Batman: Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller e Lynn Varley,  já provaram que o herói de quadrinho é, por definição, um criminoso, um inimigo do Estado, mesmo que seja tolerado pelo governo, em especial nas Eras de Ouro, Prata e Bronze dos quadrinhos. Já quando ele não é tolerado vira Guerra Civil.

No DNA do herói de quadrinho está a narrativa heróica, o monomito, uma forma de contar histórias linear como equação de 1o grau (x+y=z), simples como ligação covalente (O2)e uniforme como um movimento retilíneo (v=s/t). É tão elementar que sequer depende de você falar a língua do narrador, basta ter visão ou audição.

https://vimeo.com/250087509

Partida, realização, retorno. A jornada do herói é base da concepção de colossais sucessos na cultura de massa, como Luke Skywalker, Neo, Harry Potter ou o Batman. A jornada do herói, graças ao seu apelo universal, também é a principal força criativa por trás dos filmes da Marvel desde o lançamento de Homem de Ferro em 2008. Difícil escapar disso, Vingadores: Guerra Infinita deverá mostrar o entrecruzamento apoteótico de parcelas individuais de jornadas heroicas de cada personagem, narrativa que tem o potencial de tocar parcelas cada vez maiores de espectadores no mundo todo.

Além inebriantes, as narrativas heroicas têm outro fator comum. Os heróis dessas histórias habitam terrenos ficcionais onde tudo é possível, inclusive o fim da picada, o rachamento de pau total e completo, justamente o lugar que, no nosso mundo real, queremos escapar a todo custo.

A vida dos heróis, as histórias exigem, os impele na direção de uma ruptura, uma tomada de posição, uma atitude de protesto, a recusa diante de uma situação que eles julgam inadmissível. São situações em que os governos dos Estados, em seus diferentes graus, são coniventes com o “mal”, ou são incapazes de combatê-lo ou então são cegos para a ameaça. Auxiliados por armaduras, soros de supersoldado, ou meramente muito muito muito muito dinheiro, os heróis se encarregam de lutar em nome da causa que, além de ser bastante pessoal, se confunde com social, como a proteção daqueles que não podem se defender sozinhos. Em suma, os heróis partem pra guerra.

No tratado Da Guerra, publicado em 1832, ensinou o general prussiano Claus von Clausewitz:

[…] A guerra nada mais é do que um duelo em grande escala. Inúmeros duelos fazem uma guerra, mas pode ser formada uma imagem dela como um todo imaginando-se um par de lutadores. Cada um deles tenta, através da força física, obrigar o outro a fazer a sua vontade. O seu propósito imediato é derrubar o seu oponente de modo a torná-lo incapaz de oferecer qualquer outra resistência. A guerra é, portanto, um ato de força para obrigar o nosso inimigo a fazer a nossa vontade. (p. 75)

O duelo em larga escala, segundo Clausewitz, é o enfrentamento de exércitos contra exércitos, expressão da força dos governos, sob o objetivo de impedir que o inimigo continue lutando. Neste sentido, diz o general:

Afirmamos, pelo contrário, que a guerra é simplesmente a continuação das relações políticas, com o acréscimo de outros meios. Empregamos deliberadamente a expressão “com o acréscimo de outros meios” porque queremos deixar claro também que a guerra por si só não interrompe as relações políticas nem transforma-as em algo totalmente diferente. É essencial que continue a haver estas relações, independentemente dos meios que empregue. (p. 717)

Ora, Velho,”, diria você, douto leitor imaginário, ou então minha madrinha, que aprendeu a usar internet e impulsiona nossas pageviews, “se heróis praticam a guerra e a guerra é um ato político, as histórias de heróis poderiam fortalecer as visões políticas das pessoas, e não provocar essa pasmaceira eleitoreira que estamos assistindo!

Não seria ótimo se isso fosse verdade? Histórias de super-heróis que provocassem engajamento político consciente e cívico?

Mas eis um detalhe crucial: a maioria dos heróis dessas histórias não se alistaram, não foram eleitos, nem acataram a decisão de qualquer autoridade estatal, como juízes, prefeitos ou presidentes quando acharam que uma decisão precisava ser tomada. Ao contrário, naquela hora mais delicada, eles rejeitaram o poder dos representantes dos governos e partiram pra cima do desafio. Convenhamos, quando isso acontece é melhor do que gol de virada na Alemanha numa final de Copa.

E qual o problema? O problema é que, por mais legal que pareça, as atitudes dos heróis representam a perda do monopólio estatal da violência. “Preciso fazer algo que acho certo porque o Estado não vai fazer por mim” é uma concepção perigosa, pois legitima a subjetivação das razões para que alguém – ou qualquer um – exerça a prática da violência.

Sempre bom lembrar, diz o preâmbulo da Constituição Federal:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. […]”

O Estado, criado para garantir os direitos sociais mais básicos, como igualdade,  segurança e justiça, é um reflexo do desejo do povo, por meio de seus representantes, daí o nome “estado democrático”, e não “estado despótico”, ou “estado heróico”. Ora, se o desejo do povo conjura classes políticas que tragam “tonalidades” das narrativas heroicas, candidatos prontos a rejeitar a autoridade quando julgam necessário, é razoável imaginar que seja qual for a sigla vencedora, o eleito reflita estas expectativas.

Isso significa que, involuntariamente – ou pior, voluntariamente – os nerds estão fadados a perpetuarem velhas formas de messianismo, populismo, coronelismo, mandonismo, clientelismo e outros vícios políticos nacionais, agora com vernizes heróicos, graças ao consumo de HQs e filmes de super-heróis?

Bom, talvez.

Se histórias em quadrinhos e filmes forem as únicas fontes de influência ideológica na vida de alguém que queira exercer uma vivência política – o que é bem diferente de acompanhar “a política” na timeline do Facebook – esse é um destino fatal.

Sobre Velho Quadrinheiro

Já viu, ouviu e leu muita coisa na vida. Mas não o suficiente. Sabe muito sobre pouca coisa. É disposto a mudar de idéia se o argumento for válido.
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Uma resposta para Super-heróis, guerra e o fracasso na política

  1. Luiz André disse:

    São tempos estranhos estes em que nós vivemos. Se em gerações passadas, esperava-se que a tecnologia permitisse tanto um conhecimento quanto uma distribuição de renda maior e melhor, não é o que vemos hoje. As pessoas se “encastelam” em pequenos feudos, bravejando uns contra os outros sem que seja possibilitada uma via de diálogo em que, no caso da política, se alcance a reflexão de que ‘direitas’ e ‘esquerdas’ são, de fato, interdependentes. Esta discussão sobre se a mítica dos super-heróis também resulta (ou evidencia) o teor político contemporâneo é uma questão que não se encerra neste texto, contudo permite até mesmo uma análise mais aprofundada. Estar à margem da lei ou ser um contraventor, por melhor ou pior que sejam os motivos, ainda permeia a tônica dos comics. Quem sabe se ao invés de colocar uma máscara e uma roupa, uma pessoa não poderia se dedicar a criar uma ONG de conscientização sobre o crime, por exemplo, auxiliando menores infratores a prestarem cursos profissionalizantes e retornarem à escola, voltarem-se para as Artes, os esportes e/outras atividades benéficas em um contexto social?

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