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Por uma estética do precário: antimonumentos e a arte de ‘desesquecer’

Por Márcio Seligmann-Silva

Nos dois primeiros meses de 2016 duas exposições chamaram a atenção do público frequentador do ciclo das artes em São Paulo. De um lado tínhamos a exposição Empresa Colonial, com curadoria de Tomás Toledo e que ocupou o espaço principal do Caixa Cultural (de 12/12/2015 a 28/02/2016). Do outro, no Butantã, pudemos ver na Galeria Leme a exposição Totemonumento, com curadoria de Isabella Rjeille (de 19/01/2016 a 05/03/2016). Em comum, nas duas curadorias, a busca de artistas, a maioria jovens, voltados para pensar criticamente a nossa história – e o nosso presente. Não por acaso, entre os seis artistas representados na Empresa Colonial e os oito, da Totemonumento, dois estavam presentes nas duas curadorias: Clara Ianni e Jaime Lauriano.

A cada nova exposição, as curadorias traçam novos mapas e perfis do “estado da arte”. Esses desenhos são movediços e se transformam a toda hora. Mas não como nuvens em um céu azul. Com mais vagar eles vão construindo e revelando nosso habitat artístico. Vão abrindo caminhos sobre um chão nem sempre tão estável. Para iniciar esta reflexão sobre essas duas curadorias, permito-me lançar mão de uma obra apresentada em outra exposição recente. Lembro aqui da impressionante obra de Lucas Simões, Recalque diferencial (2015), apresentada na exposição Jogo de Forças, com curadoria de Philipe Augusto, mostra que também serviu para encerrar as atividades do Paço das Artes no prédio da USP. Nessa obra de Lucas, pisamos sobre um solo que arrebenta sob o nosso peso – e ao mesmo tempo nos amortece. A proposta de Philipe (em uma curadoria que, sem surpresas agora, também tinha obras de Clara Ianni e de Jaime Lauriano) era a de juntar obras que servissem como dispositivos para refletirmos sobre nosso mundo e sua teia de poderes. Pois bem, essa obra de Lucas nos faz pensar no solo em que pisamos. Nosso andar torna-se errante, pois o pisar, com o qual raramente nos ocupamos, assim como não pensamos em nossa respiração, esse pisar toma toda a nossa atenção quando caminhamos tateantes a obra com os pés. Andamos como errantes. E é talvez essa imagem do “errar refletido” que pode nos servir par pensar quanto ao acerto dos curadores Tomás Toledo e Isabella Rjeille.

Acerto do relógio das artes – compassado com alguns curadores como o próprio Philipe Augusto, Priscila Arantes[1], Giselle Beiguelmann (com sua exposição Memória da Amnésia, de 2015) ou Moacir dos Anjos, que com sua exposição Cães sem Plumas, na Nara Roesler em 2013, já dera também poderosas indicações quanto a essa necessária errância das obras e curadorias pelo campo do “político”. Não nos surpreende também ver naquela curadoria de Moacir a presença de Regina Parra e de Cildo Meireles (também representados em Totemonumento). Moacir põe lado a lado diferentes gerações de artistas de peso quando se trata de pensar a arte de inscrever o esquecimento e a violência, como, além dos já mencionados, Antonio Dias, Claudia Andujar, Rosangela Rennó, Paulo Bruscky, José Rufino, Armando Queiroz, Paulo Nazareth, João Castilho, Marcos Chaves, Thiago Martins de Melo, Paula Trope e Virginia Medeiros.[2]

O que acontece nas exposições Totemonumento e Empresa Colonial? Ainda me apoiando na referida obra de Lucas Simões, pergunto-me como o cuidadoso e refletido “pisar” dos dois curadores os levaram a um original percurso, e mesmo, a um involuntário encontro, como se uma exposição continuasse na outra. Impossível pensar nelas sem refletir sobre o momento político pelo qual passa o Brasil e o mundo. Refiro-me à chamada grande política e sua “repisada” crise da representação, tão falada, sobretudo, no Brasil, desde junho de 2013. Essa crise ganhou novos contornos com o caminhar das investigações da Polícia Federal e dos juízes da Operação Lava Jato. Ao mesmo tempo, vivemos desde 2015 uma crise mundial migratória sem precedentes, com milhões de pessoas expulsas de suas casas e países, criando uma população de milhões de deslocados errantes, sendo barrados, rechaçados e jogados ao mar. O início de 2016 foi também o momento de início das operações da mega-hidrelétrica Belo Monte, que, com a violência que exerceu e exerce sobre a população local, provocou milhares de expulsões e, novamente, de errâncias involuntárias, sem contar um dos maiores ataques que a floresta amazônica e suas populações indígenas já sofreram. Sem esquecer também dos atentados terroristas na França (2015) (e, já depois das exposições, na Bélgica em 2016) e da resposta nacionalista e xenófoba europeia... Novos muros são erguidos a cada dia. O político parece reduzido a essa arte de barrar e separar de modo violento. Enfim, a grande política estava em verdadeiro colapso quando essas exposições aconteceram.

 

Curiosamente, ambas já em seus títulos, que indicam de modo eloquente as balizas curatoriais, voltam-se para um pensamento histórico. Elas colocam o tempo e a história no centro de suas atenções. Toledo procurou apontar para as continuidades entre o passado colonial brasileiro e suas violências atuais (incluindo as da última ditadura civil-militar). Rjeille retoma a forte imagem dos monumentos (que ela, inspirada em Cildo Meireles, associa à do totem) para pensar as transformações de nossos parâmetros acerca de “o que” e como devemos nos lembrar. As artes sempre foram tomadas como dispositivos mnemônicos, desde a Antiguidade. Um totem, lembremos com o Freud de “Totem e tabu”, é uma figura substitutiva de uma imagem paterna (recalcada, porque originariamente vencida, assassinada e devorada). O totem é a memória do esquecimento, mas que guia, como no caso do recalcado, nossas ações presentes. Já o monumento, que vem do latim monere, que significa advertir, exortar, lembrar, serviu desde muito àquela modalidade artística equivalente ao discurso panegírico: à eternização dos “grandes heróis” e de seus “grandes feitos”. Tudo é grandioso, épico, na cena do monumento. E foi essa estética do monumento que se impôs também na Modernidade industrial, quando no século XIX a Europa ficou banhada de sangue pelas batalhas de unificação nacionalistas. E monumentos continuam a ser elevados em nossa era de catástrofes.

Como artistas e curadores intervêm em um panorama pontuado pela radicalização, pelo sectarismo, fundamentalismo, em uma palavra, pela violência, como esse? Eles vão ativar nas artes seu momento de inscrição crítica do real. A arte dispõe tanto de sua capacidade de “duplicar” o real, para se apropriar dele, como também de um momento lúdico-crítico.[3] Nesse seu lado de “jogo” ela permite tanto um movimento de aproximação do real como de distanciamento. Ela amplia aquilo que Benjamin chamou de Spielraum, ou seja, campo de “jogo”, espaço de ação: campo de forças lúdico. Com isso, ela permite também, como Freud já notara ao descrever o jogo do bebê que brinca de jogar para depois puxar para si seu brinquedo, um apoderamento do trauma. Aquele que joga com a dor, cava o leito para que ela escorra. O artista que nos ensina a ver a realidade de outro modo, deslo(u)cando-a, cria esse espaço de ação. Ele nos torna passíveis de lidar com a dor e suas causas. Nesse sentido, é importante lembrar o parentesco entre o jogo e uma figura de linguagem, a ironia. Com Thomas Mann, Anatol Rosenfeld afirmou que a “ironia é distância” e arrematou: “Distância é a situação do estranho e marginal”.[4] Esse estranho vive sem casa. E já um outro imigrante no Brasil, Vilém Flusser, formulou em um texto ainda do início dos anos 1960, Für eine Philosophie der Emigration (Para uma filosofia da emigração): “Quando o homem se coloca na ironia, ele pode observar o que o determina”[5]. É a revolta que nos leva à ironia. O ironista afasta as coisas para poder reaproximá-las e iluminá-las de modo crítico. Ele, a partir de seu jogo, revela um outro mundo. A arte é agente revelador (fotográfico) do mundo, que ao mostra-lo em desvio de paralaxe nos abre para outras possibilidades de construção do real. Suas heterotopias nos libertam do nosso espaço de submissão. Assim, quanto mais crise, quanto mais violência, mais necessidade temos tanto da ironia (jogo), como da arte, desse mergulho no virtual-real que as artes conseguem criar. Observemos, então, mais de pertos as obras dessas duas exposições.

 

EMPRESA COLONIAL: O PRESENTE DO PASSADO

 

Ao adentrar a exposição na Caixa Cultural São Paulo, o visitante logo se deparava à sua esquerda com a obra de Jaime Lauriano Quem não reagiu está vivo (2015). Trata-se de uma série de dez pranchas com folhas enquadradas sob material transparente, cada qual com uma imagem na parte superior, um título no meio e um texto em português e inglês na metade de baixo. Essa forma lembra, não por acaso, a forma barroca do emblema, que era caracterizada pelo jogo entre um título, um texto em forma de poema ou de prosa e uma imagem. O título portava a “moral” do emblema. Aqui nessa obra de Lauriano, os títulos assumem mensagens que visam rever a história do Brasil, orientando-a agora do ponto de vista dos vencidos e espezinhados. Ele concretiza a necessidade de se “escovar a história a contrapelo”[6], na expressão de Walter Benjamin. Como Benjamin nota na mesma tese “Sobre o conceito da história”, o historiador crítico, o materialista histórico, deve recuar (distanciar-se) criticamente da noção de história tradicional, poderíamos dizer com Nietzsche, monumentalista[7], que vê na história um cortejo de vencedores e se identifica com ele. Benjamin escreve:

 

[...] os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corveia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie.[8]

 

Assim, acompanhamos nas pranchas de Lauriano uma reescritura de uma história que parecia familiar e conhecida, mas que é transformada e revelada em seu fundo de violência recalcada. A primeira prancha recorda a resistência da população africana escravizada no Brasil que construiu o Quilombo dos Palmares. A ilustração, imagem muito reproduzida de Manuel Vítor de 1955, Guerra dos Palmares, retrata a repressão ao quilombo, e o texto enfatiza que esse massacre significou a perpetuação “do direito do homem sobre o homem”. A segunda prancha reproduz o conhecido mapa “Terra Brasilis” (1519) cujas imagens comemoram a conquista lusitana, no estilo da empatia com os vencedores que lemos criticamente com Benjamin. No caso, o mote/título da prancha (“exploração escrava da mão de obra dos povos nativos”) e o texto descontroem a imagem do mapa (e uma determinada imagem triunfalista da história). Se a primeira prancha leva a uma empatia com as populações africanas escravizadas e massacradas, nessa prancha o olhar se volta para o sofrimento das populações autóctones:

 

O famoso mapa Terra Brasilis – encomendado por Dom Manuel I, e realizado pelos cartógrafos Lopo Homem, Pedro Reinel e Jorge Reinel e ilustrado por António de Holanda – glorifica a Invasão Portuguesa ao ‘novo mundo’. Neste exemplar podemos notar como os autores descrevem, e ilustram, o novo continente exaltando a exploração do solo ‘brasileiro’, a partir da colonização e escravização dos corpos de dezenas de povos indígenas.

 

A terceira prancha enfoca o “extermínio e dissolução de comunidades auto organizadas”. No caso, a foto é dos seguidores de Antônio Conselheiro em Belo Monte (Canudos). O texto enfatiza que essa população que resistia à “lógica latifundiária que estruturava o solo e a sociedade brasileira” foi massacrada, com um saldo de mais de 25 mil mortos. A quarta prancha também se volta para o conflito no campo, mas enfatiza a “concessão da exploração territorial para empresas estrangeiras”. É como se o século XX desse continuidade ao tipo de exploração já apresentada no mapa Terra Brasilis. A quinta prancha estampa o retrato de uma placa erigida em 9 de outubro de 1970, em Altamira, ou seja, em plena Amazônia e na ditadura civil-militar, que serviu de marco para o início da construção da via Transamazônica. O mote enfatiza a “devastação de florestas e extermínio de povos indígenas” e a explicação conecta as “obras faraônicas” da época da ditadura ao desejo de eternização dos presidentes militares, que acarretou na morte de “milhares de povos indígenas”.[9] A sexta prancha retoma o tema atual da “repressão policial como tática de genocídio” que na explicação é exemplificada pela Chacina da Candelária, de 1993 no Rio de Janeiro: “o episódio revelou a política, genocida, de higiene social”. A prancha seguinte, desdobrando também ideias das pranchas três e seis, foca o “massacre como tática de dispersão de manifestações sociais”. O texto recorda outro massacre de resistentes, no caso, os camponeses de Eldorado dos Carajás, assassinados barbaramente pela polícia militar do Estado do Pará em 1996. A oitava prancha é dedicada ao lema “devastação de comunidades para assegurar o progresso da nação”. Ela se volta para a construção de uma das mega-hidrelétricas do Norte do país, que gera destruição socioambiental, destrói comunidades locais, tudo isso sob a batuta de um conglomerado violento composto pelo Estado brasileiro e seus aliados empresariais nacionais e internacionais. A nona prancha novamente destaca a resistência contra a aliança do capital com o Estado. O mote é uma citação das palavras do governador do Estado de São Paulo da época do massacre da comunidade de Pinheirinho, no Estado de São Paulo, durante mais um ato bárbaro de reintegração de posse: “quem não reagiu está vivo”. Lema cínico de um governo que de modo escancarado assume a sua política de extermínio dos que resistem às imposições do Estado-capital. A política de moradia se revela aqui também como higiene social. A última prancha destaca: “segregação e racismo institucional transfigurados de medidas de segurança social”, ou seja, ela quer desvelar a hipócrita política racista da polícia, no caso, do Rio de Janeiro. As fotos dos emblemas empregadas por Lauriano destacam as imagens dos resistentes: a população de Canudos, o enterro após a Chacina da Candelária, os membros do MST de Eldorado dos Carajás, a comunidade indígena, vítima das barragens das hidroelétricas, a população armada de Pinheirinho pronta para enfrentar o batalhão da PM paulista. Com esse foco nas lutas de resistência e na violência da repressão, ele trabalha no sentido de construir uma nova imagem para a história de um país que ainda costuma cultuar seus “heróis” vindos de suas elites.[10]

Lais Myrrha estava representada em Empresa Colonial com uma obra intrigante chamada O tempo corre para o norte (da série Insólitos-estáveis). Trata-se de uma ampulheta, na qual, de modo desconcertante e anti-natural, o lado cheio está na parte de cima e não escorre para a metade de baixo, apesar do canal entre as duas metades da ampulheta estar desobstruído. Lendo a descrição da obra, entendemos sua física: ela é feita com pó de ferro e imãs. Mas a imagem desconcertante desafia nosso olhar. Trata-se de um “insólito estável”, tal como o é a continuidade da violência neste sul esvaziado de tempo... Por que o tempo corre para o norte? Poderíamos responder, porque a mais-valia (o tempo-trabalho) também corre para o “norte”, para os detentores do capital... Ou mesmo a temporalidade do ócio, o ter tempo para não ter falta de tempo, cada vez mais é uma qualidade do “norte”, a qual a maior parte das populações do “sul” não pode se dar ao luxo. Também, como vimos, o tempo histórico é apanhado, apropriado e inscrito pelo “norte”, restando ao sul a luta pela contra-inscrição de seu “tempo perdido”. A própria lei da gravidade é posta em suspenso por essa obra, ou seja: no “sul” os direitos mais básicos são negados e suspensos para a maior parte de suas populações. De modo sutil Lais mostra uma sobreposição entre violência e modernidade em suas obras. Sua recente exposição individual na Galeria Jaqueline Martins, O Instante Interminável (2015), também confirma isso. Ela tinha como centro uma obra que consistia em um disco de vinil no qual podia-se ouvir tanto o texto “O caráter destrutivo” (1931), de Walter Benjamin, como o texto de Lina Bo Bardi “Na Europa, a casa do homem ruiu” (1947). Ambos textos tratam da destruição e da violência como marcas da Modernidade. Esse mesmo aspecto, de resto, também sustentou sua forte exposição Projeto Gameleira 1971, que ela apresentou no Pivô, em 2014, que reconstituiu o acidente ocorrido durante a construção de um prédio em Belo Horizonte, assinado por Oscar Niemayer, um dos maiores desastres da história da construção civil no Brasil, e cuja narrativa também foi apagada dos anais da nossa história.

Empresa Colonial, de resto, também possui uma obra que pode ser aproximada a esse Projeto Gameleira 1971 de Lais. Trata-se de Brasília Broadcast de Beto Shwafaty. Novamente trata-se de uma estética de ruínas feita para nos lembrar de obras faraônicas e da violência normalmente recalcada que envolve as suas construções. A obra consiste em fragmentos de tijolos, concreto, pedra, ferramentas e um mastro de madeira com um megafone em diagonal, meio de ponta-cabeça. Estamos na cena de uma “construção”, ou mais precisamente, da desconstrução dessa construção. Do megafone saem as palavras do último discurso que Juscelino Kubitscheck fez como senador, em 1964. Juscelino já pressentia que a ditadura caçaria seus direitos políticos. É como se a criatura engolisse seu criador: a lógica da grande política sendo sempre a lógica da violência. Brasília surge como metáfora de uma política que serve apenas aos próprios donos do poder. O grande símbolo da Modernidade se revela alegoria da destruição.

Recordo que a arqueologia da violência de Brasília foi feita de modo primoroso por Rosângela Rennó em sua obra Imemorial, de 1994. Nessa obra ela reuniu cinquenta fotografias a partir de um enorme arquivo abandonado que ela encontrou no Arquivo Público do Distrito Federal referente à construção de Brasília. Sabe-se que inúmeros trabalhadores, os chamados “candangos”, morreram de modo trágico durante a obra, que pontuou o governo do presidente Juscelino Kubitschek: uma cidade construída em menos de quatro anos, com exploração abusiva dos trabalhadores (com jornadas de catorze a dezoito horas) e repressão a bala das suas tentativas de organização e revolta. Com relação a essa violência contra as lutas dos “candangos” é interessante notar que na referida exposição no Paço de 2016, Jogo de Forças, a obra de Clara Ianni, Forma livre (2013), retoma as conhecidas e tristes entrevistas realizadas com Oscar Niemeyer e com Lucio Costa em 1989 sobre um massacre ocorrido durante a construção de Brasília em 1959, que ficou conhecido como chacina da Pacheco Fernandes, e que teve o saldo de mais de cem operários assassinados pela polícia após uma greve. Lúcio Costa diz na entrevista que esse evento é sem importância, apenas “espuma”, que não dá a menor importância ao fato e que ele ocorreu por conta de “excesso de liberdade”. Já Oscar Niemeyer nega terminantemente que o evento tenha acontecido. As entrevistas, realizadas por Vladimir Carvalho, são apresentadas em off enquanto vemos imagens do desenho do plano piloto de Brasília e fotos da época da construção. Essa relação em rede dessas obras e curadorias aponta para a virada mnemônica que se dá em nossa cena artística-cultural (e Rennó, sem dúvidas, sempre foi uma figura de ponta nesse movimento, apesar de – ou justamente por – sempre insistir que é uma artista do esquecimento e não da memória).

Beto Shwafaty possuía outra expressiva obra na exposição no Caixa Cultural. Refiro-me a seu Aculturação (não) é integração I (2015). Essa obra lembra um totem (mais um canal de comunicação com a exposição de Isabella Rjeille na Galeria Leme) composto por um “pedestal” (um tubo de concreto desses que se usa em canalizações) sobre o qual pousava um “vaso cerâmico” com a impressão de símbolos em verde e amarelo, estilizados, que remetem ao logotipo da Vale do Rio Doce. Essa sobreposição, somada ao nome da obra, sugere novamente o apagamento dos rastros, a diluição das diferenças sob o signo da monotonia do logotipo, que impõe um tipo, “o” tipo, em um país multilíngue e multiétnico. A Modernidade ganha ares de empresa fáustico-fascista – que deve ser enfrentada e desconstruída. E essa tarefa está sendo enfrentada em grande estilo por esses artistas que, sem medo, podemos chamar de neovanguardistas, por seu posicionamento explícito no campo de batalha sociocultural.

Uma outra obra de Shwafaty, que ficou ao lado da obra de Lais e no mesmo corredor de Quem não reagiu está vivo, como que dá continuidade a esse repaginamento da história, feito por Lauriano. Shwafaty, em Anhanguera/Bandeirantes (2015), coloca lado a lado as imagens de dois monumentos, o que está no início da rodovia dos Bandeirantes e o monumento a Anhanguera, diante do parque Trianon, em São Paulo (obra de Luiz Brizzolara, de 1924). No texto que acompanha as imagens, ele explica a importância do sistema de estradas Anhanguera/Bandeirantes para a economia do estado e, em outro texto, desmistifica o culto dessas figuras históricas que dão nome às estradas. Shwafaty também mostra, portanto, a continuidade entre a violência colonial e nossa modernidade capitalista selvagem. Estamos, assim, novamente, em plena cena, literal, do antimonumento, o contramonumento e de desconstrução e dessacralização dos mitos nacionais. Os Bandeirantes, além de serem figuras centrais no mapa da memória de São Paulo, ao nomearem duas de suas principais estradas, de serem homenageados por esse monumento a Anhanguera e, entre tantos outros, pelo que homenageia o Borba Gato (talvez um dos mais terríveis documentos da nossa produção estética fascista do século XX, de Júlio Guerra, 1963), de serem figuras centrais comemoradas nos livros didáticos e em vários sites na internet, eles estão também homenageados no maior monumento brasileiro, o Monumento às Bandeiras, de Brecheret, inaugurado simbolicamente em 1954, no aniversário do quarto centenário da cidade. Ele será abordado mais adiante.

Mas voltemo-nos agora para uma outra obra que é o exato oposto desse peso descomunal do monumento às Bandeiras. Refiro-me às delicadas e sutis obras de Clara Ianni, Desenho de classe 4 (2014) e Desenho de classe 7 (2015). Essas obras são compostas, cada uma delas, por dois quadros que consistem em uma folha de papel vegetal emoldurada. Nessas folhas vemos o traçamento de tênues linhas. Em cada par de pranchas uma linha em meio ao branco da folha leva como “assinatura” uma informação sobre a “Renda Mensal”. Ao inquirir sobre a obra ficamos sabendo que ela tem como origem a pesquisa da artista em residências em São Paulo. Os traços no papel vegetal reproduzem os trajetos que o patrão ou a patroa e a empregada daquelas residências fazem ao se deslocarem para ir ao trabalho. Em uma prancha vemos o trajeto de quem emprega e sua renda mensal, na outra o trajeto da empregada e sua renda mensal. A relação que se percebe é que os salários mais baixos correspondem a trajetos de dez a vinte vezes maiores que o dos habitantes da casa (os patrões) que fazem percursos curtos. Essa inscrição literal dos traços e marcas das diferenças sociais, essa simbolização das diferenças e das fronteiras de classe – um verdadeiro “desenho das classes” –, essa busca arqueológica das linhas divisórias que constroem o Brasil, também estão no centro de outra obra de Ianni, que está na exposição Jogo de Forças, chamada justamente de Linha (2013). Nessa obra, composta também por páginas predominantemente brancas com molduras em madeira, acompanhamos as linhas identitárias do Brasil, ou seja, as marcas de sua história da violência, em uma reductio ad absurdum. As linhas emblemáticas da história (natural da violência) desse país eleitas por Ianni, como lemos também nas “assinaturas”, são: Transamazônica, 1972, Brasília, 1960, República, 1889, Capitanias Hereditárias, 1534 e Tratado de Tordesilhas, 1494 – esse último sendo uma espécie de anúncio ou corte avant la lettre da futura Terra Brasilis. Digno de nota como nessa história natural da violência dessa Terra, certos topoi tornam-se paradigmáticos para esses novos artistas da memória do esquecimento: a Transamazônica, a bandeira nacional, os Bandeirantes e sobretudo Brasília.

E não esqueçamos, dentre esses topoi e agentes da memória (imagines agens)[11], do próprio traçado do mapa do país, que é reiterado em muitas dessas obras. Assim, também em outra obra de Lauriano da mostra Empresa Colonial, vemos um mapa do Brasil pintado com giz branco, mais especificamente, uma “pemba branca”, giz utilizado em rituais de umbanda, sobre “algodão preto”. Com esse material, Lauriano fez questão de retraçar essa linha política, como parte de uma política do corpo e de autoafirmação. Usurpando o poder de traçamento dos agentes cartógrafos a serviço do poder, ele inscreve com pemba branca limites resignificados: o branco da pemba vira agente de inscrição das populações historicamente oprimidas. Seu título estampa em tom irônico: República (democracia racial) (2015). E, novamente tensionando a imagem com um texto, Lauriano estampa ao pé do mapa do Brasil uma estrofe do “Hino à Proclamação da República”, um verdadeiro monumento ao esquecimento, já que suas palavras (de autoria de Medeiros de Albuquerque) perpetram: “Nós nem cremos que escravos outrora/ Tenha havido em tão nobre País.../ Hoje o rubro lampejo da aurora/ Acha irmãos, não tiranos hostis”.[12]

Também dando corpo ao tema da “democracia racial” na Terra Brasilis, Bruno Baptistelli apresenta em Empresa Colonial outras duas obras em cor preta – ou negra. Uma delas consiste em um retângulo de 150 x 200 cm em piche que foi depositado no chão, no centro da exposição. Seu nome, também emblemático, é Neutralização (2015). Essa pavimentação, que, paradoxalmente interrompia o trânsito dos visitantes (pedestres) pela exposição, fazia com que o espectador olhasse “para baixo” e tomasse cuidado por onde andava. Esse recálculo do andar, como vimos na obra de Lucas Simões, Recalque diferencial, nos lança em um trabalho de elaboração de nossos fundamentos, do chão em que pisamos e no qual construímos nossos prédios de tijolos e de concreto e também os simbólicos. Se a obra de Lucas era pensada para se pisar, essa de Bruno explorava ironicamente o “do not touch me” da arte aurática. O não pisar no asfalto faz pensar que a rua é local perigoso e para carros e não para pedestres, mas também recorda, como o Imemorial de Rennó, os acidentados que jazem sob nossas ruas e construções. A ausência de cores remete ao luto também, a uma tarja que pode ser projetada sobre a cidade e a sociedade. Esse recorte de cidade, como uma fotografia, a parte pelo todo, é índice de um campo de forças, de um “progresso” que tem por mote a “força da grana que constrói e destrói coisas belas”, o “everybody knows, that our cities were built to be destroyed”. No meio dessa paisagem mutante e agressiva, o indivíduo desaparece e só resta o asfalto como “curativo” e meio de esquecimento: neutralização das diferenças e das tensões. No trânsito somos todos iguais – claro, se você possui um carro. Paz e silêncio pavimentando os conflitos. Ao lado dessa obra, o visitante podia observar o outro trabalho de Bruno, chamado Linguagem (2015), que consiste em dois quadros (impressão em papel offset adesivada sobre pôster de madeira). Os dois são inscrições que nos forçam a pensar a cada vez que queremos exprimir a “ausência de cores”: uma estampa a palavra “NEGRO” e a outra “PRETO”. Podemos dizer que a palavra negro está escrita sobre o fundo preto ou negro e o mesmo valendo para a palavra preto. Ao explorar a carga explosiva da linguagem, que se manifesta de modo especialmente agudo sobretudo quando se trata de inscrever os dramas raciais e de gênero, Bruno monta um poderoso des-construtor de linguagem. A afasia que decorre dessa obra (em preto sobre preto, negro sobre negro etc.) ecoa o não lugar da pessoa de pele negra/preta na paisagem simbólica das construções e autoimagens forjadas pelas elites de Terra Brasilis. O que é ser negro e ser preto? Com pensar as infinitas gradações de tom? Aqui também vemos uma reductio ad absurdum das artes plásticas. O gesto de pintar com a ausência de cores e reduzido aos tons de negro/preto é uma espécie de indicação de que precisamos reaprender a falar e isso vale também para as artes: linguagem. Essa redução, de resto, não por acaso marcou muitas obras do expressionista abstrato Ad Reinhardt e foi reapropriada por Art Spiegelman quando ele teve que fazer uma capa da New Yorker apresentando o ataque das torres gêmeas em 2001. Também Spiegelman optou naquela ocasião pelo “black on black” (é claro) para expressar o terror de alguém que, como ele mesmo, viveu aquele dia ao pé das torres que ruíam. O sucumbir do aparelho de representação das artes diante do terror exige que ele seja repensado e recriado. O tom sobre tom é o primeiro “lalar” dessa criança que nasce das ruínas.

Da exposição Empresa Colonial comento, por fim, o trabalho de Rafael RG Vestimenta (autorretrato) (2015). Por se aproximar da body art, esse trabalho se destaca das linguagens predominantemente conceituais das demais obras da exposição. Aqui temos uma foto de um falo amarrado em sua ponta e levantado por um cordão de fibra de árvore (Buriti). Trata-se de uma vestimenta indígena frequente em muitas tribos brasileiras. A foto, em close, não apresenta a face do artista, que utilizou essa vestimenta durante uma semana, como em um ritual para se aproximar da cultura indígena. Esse quadro está colocado sobre um quadrado pintado com uma cor catalogada sintomaticamente com o nome “Pecado Original”. Sobre esse quadrado em cor, na ponta oposta ao quadro com o retrato, vemos o próprio “estojo peniano” que o artista utilizou em sua foto. Podemos apenas especular sobre o que Rafael visou ao se travestir como indígena, representando esse papel, como que literalmente abandonando as roupas da “civilização” a favor dessa vestimenta com profundos significados nas culturas indígenas. Para além do papel do artista performer que ele encarnou, uma espécie de Dioniso, que critica a cultura pela via da sua transgressão e rasura, também sem contar um certo indigenismo romântico, herança do século XIX, que reduz o indígena a um papel folclórico, o que vemos aqui é uma montagem de “restos”. Tanto o estojo peniano é um resto (pars pro toto) de uma cultural plural que antes dominava todo o continente americano e que teve a sua população dizimada em uma proporção estimada de nove para cada dez, como também um “resto” irônico do indigenismo e da tentativa dos brancos de “representarem” os indígenas, seja nas artes, seja na antropologia ou nas ciências. Nessa pequena instalação, Rafael faz ecoar o longo processo de genocídio, de “emasculação” concreta e simbólica de milhares de populações indígenas. O “pecado original”, então, é não só o pecado bíblico que explica, nas culturas ocidentais, porque temos vergonha de nosso corpo e utilizamos vestes, mas também o pecado original da colonização. A pedra de toque da “Empresa colonial” correspondeu ao início do genocídio das populações indígenas no momento mesmo em que os europeus “descobriram” a América. Esse é o “pecado original” encenado nesse continente. Esse “pecado” é realizado sem que o testemunho indígena seja escutado. Eles ficam “sem testemunho”, pois a sociedade não os quer ouvir. Em latim, vale lembrar, testemunho é testis, termo que significa ao mesmo tempo testículo. Sem testemunho, essa população tampouco pode ver suas histórias germinarem para viabilizar uma resistência a esse genocídio. As populações indígenas estão, portanto, duplamente “castradas” e essa apresentação fálica de Rafael, paradoxalmente, nos faz pensar nisso.[13]

 

Vista da exposição

Lais Myrrha, O tempo corre para o norte (da série Insólitos-estáveis), 2008

Beto Shwafaty, Anhanguera/Bandeirantes, 2015

Rafael RG, Vestimenta (autorretrato), 2015

Bruno Baptistelli, Linguagem, 2015

Jaime Lauriano, Bandeira nacional #3, 2015

Beto Shwafaty, Aculturação (não) é integração I, 2015

 

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TOTEMONUMENTO: RECORDAR O ESQUECIDO


Com a participação de Erica Ferrari, Frederico Filippi, Raphael Escobar, José Carlos Martinat e dos já mencionados Cildo Meireles, Regina Parra, Clara Ianni e Jaime Lauriano, Totemonumento é uma exposição-marco, memento, na paisagem de nossas curadorias. Rjeille colocou o tema da memória e sua inscrição no centro de sua exposição. Ela procurou refletir, com os artistas e suas obras, sobre o (novo) papel de uma arte da memória que tem se desenvolvido nas últimas décadas (e especialmente muito recentemente no Brasil). Como vimos, o contexto desse questionamento é o de novas e poderosas querelas que abalam com sulcos profundos o nosso solo: sem-chão, tentamos caminhar e lançamos mão como apoio das novas modalidades de inscrição memorial das artes. Sobretudo em um país sem tradição de inscrição da sua história de violência e acostumado a manter-se no paradigma da história monumentalizante, as artes têm um papel fundamental a desempenhar no trabalho de inscrever criticamente as violências e esquecimentos passados e do presente. Elas devem servir de “tiro”, de um projétil cujo estampido deve nos despertar do sono do conformismo e de nossa história que apazigua e nega os conflitos. Nossos monumentos enfeitam nossas praças lembrando “grandes” generais, presidentes, governadores, prefeitos e outros “grandes” que fizeram com que associássemos os monumentos à ideia de história dos vencedores, de triunfo, como vimos acima com Benjamin, dando continuidade à tradição clássica da história e de sua monumentalização como construção de modelos, de vidas heroicas que deveriam ser cultuadas e mimetizadas. Glória e Fama são as deusas que enfeitam os pedestais dos “grandes homens” (sim, as mulheres também são excluídas dos triunfos, a não ser como enfeites e coadjuvantes).

O Brasil é um dos poucos países do mundo a manter como o principal e maior monumento (memento) de sua última ditadura um mausoléu em homenagem ao seu primeiro presidente ditador. O mausoléu a Castelo Branco, no Palácio da Abolição em Fortaleza, assusta aqueles que procuram, hoje, soletrar questões advindas dos debates em torno dos direitos humanos e das comissões de verdade. Esse monumento, no entanto, não faz mais do que ecoar os outros tantos em nossas praças, inclusive os que homenageiam os bandeirantes, como vimos acima. Já as tentativas de se erigir memoriais (e não monumentos) voltados para os trabalhadores e populações vítimas da história, via de regra, terminam na vandalização e destruição, total ou parcial desses memoriais. Esse foi o caso do memorial “9 de novembro”, em homenagem aos três operários da Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda, William Fernandes Leite, Valmir Freitas Monteiro e Carlos Augusto Barroso, mortos após invasão da usina por tropas do Exército, sendo que o então presidente José Sarney autorizou os militares a invadirem a usina. De autoria de Oscar Niemeyer (sim, já vimos um pouco as contradições desse senhor), inaugurado em 1 de maio de 1989, com a frase gravada: “Um monumento àqueles que lutam pela Justiça e pela Igualdade”, no dia seguinte à sua inauguração uma bomba quebrou o memorial ao meio. Niemeyer fez questão de mantê-lo parcialmente destruído e acrescentou a frase: “Nada, nem a bomba que destruiu este monumento, poderá deter os que lutam pela justiça e liberdade”. Também o Massacre de Eldorado de Carajás, recordado por Lauriano em seu dispositivo de contra-história, quando dezenove sem-terra foram assassinados por membros da Polícia Militar do Estado do Pará, teve seu marco memorial, na cidade de Marabá, destruído poucos dias após a sua inauguração. Também ele era de autoria de Niemeyer. Por sua vez, no Rio de Janeiro, o monumento a Zumbi dos Palmares, na Praça Onze, de 1986, é vandalizado todos os anos no dia da consciência negra... Já, por outro lado, o triângulo da memória de São Paulo, no Ibirapuera, composto pelo Monumento às Bandeiras, pelo Obelisco Mausoléu aos Heróis de 32 (de 72 metros de altura, do artista Galileo Emendabili e do engenheiro Ulrich Edler), de 1970, e pelo monumento a Pedro Álvares Cabral (do arquiteto Agostinho Vidal da Rocha e do artista Luiz Morrone), de 1988, continua de modo impassível a dar o tom da autoimagem oficial (e não só) dos paulistas.

Como a curadoria de Rjeille enfrenta essa violenta tradição de monumentalização dos “grandes homens e seus feitos” e seu corolário, o apagamento dos traços das lutas e da resistência dos despossuídos? Iniciemos o périplo dessa exposição pela obra de Jaime Lauriano justamente intitulada Monumento às Bandeiras (2015-2016). Trata-se de uma fantástica reversão da monumentalidade da obra de Brecheret. Lauriano novamente opera uma redução em seu trabalho: reduz a dimensão megalômana do monumento do Ibirapuera (cinquenta metros de comprimento e dezesseis de altura, pesando cinquenta toneladas) ao tamanho de um tijolo de cerca de vinte centímetros. O tijolo é o pedestal dessa obra paradoxal que reproduz sobre essa base cheia de simbolismo, sem se preocupar em ser precisa e mimeticamente exata, a obra de Brecheret. Mais importante ainda: o material para esse micro antimonumento é constituído pelo metal derretido de cartuchos de munições da Polícia Militar. Essa obra pode ser vista como sendo, literalmente, um projétil lançado contra nossa visão edulcorada e obliterante do passado, de suas violências desaparecidas. Essa obra apenas já faria de Totemonumento uma exposição digna de ser recordada. Mas continuemos o périplo.

Passemos a outra obra que também se volta para a paródia, o pastiche, a citação e o deslo(u)camento de outro enorme monumento. Refiro-me ao trabalho de Erica Ferrari, Sobre nossas cabeças (2015-2016). Essa obra é feita de restos e entulho de demolição. Um mastro rústico sustenta um bloco composto por material aglomerado. No meio desse “medalhão” de entulho, como que nascido de um calque, vemos a perna de um cavalo, decalque literal de uma famosa estátua equestre de São Paulo. Trata-se do monumento a Duque de Caxias, também do já conhecido Victor Brecheret, de 1960, da praça Princesa Isabel, centro de São Paulo, aliás, o maior monumento equestre do mundo (haja orgulho!). O trabalho de Erica Ferrari transpõe a estética da continuidade e da perenidade para uma da ruptura e da precariedade. Nada é estável aqui: identidades, materialidade, estabilidade, tudo é posto em questão. Como temos visto aqui, o recurso ao calque é um importante elemento da estética dos antimonumentos. Isso acontece por vários motivos, mas o mais importante deles é que o princípio do antimonumento não é o da metáfora ou da narrativa, mas sim o princípio do índice, da coleção de ruínas, de restos, de traços: de pegadas. Daí também as reduções e, às vezes, os aumentos de escala. Eles visam elaborar uma memória específica, muitas vezes associada ao trauma, tipo de memória singular que é marcada por uma literalidade, um hiper-realismo que fragmenta (e desrealiza) a imagem. Restam as ruínas. Como um detetive-colecionador, que cata os restos na cena de um crime, o artista-trapeiro cata o que restou do banquete da cultura para citar desconstruindo.[14]

Também a instalação sonora de Raphael Escobar, “Furo”, foi feita com base na citação de sobras. No caso, ele se apropria dos testemunhos de um sobrevivente do massacre do Carandiru, crime perpetrado pela PM de São Paulo em dois de outubro de 1992 e que até hoje teve seus culpados livres de condenação formal pela justiça. O artista faz seu trabalho de apanhar o que restou, no caso, os testemunhos e as versões da imprensa sobre o massacre. Os depoimentos se alternam e por vezes se sobrepõem. A ideia de “furo”, do título, traduz tanto a noção de furo de reportagem, como de furo no tempo: o artista faz um “olho (boca) mágico” que permite a nós “ouvermos” aquela catástrofe; mais uma na história de massacre daqueles considerados como carne descartável pelo poder nesse país. Os depoimentos da imprensa ficam anônimos, sem assinatura, construindo um campo de tensões de versões. Por fim, “furo” remete aos furos feitos na parede da Galeria Leme, que dão para o seu exterior. Era do lado de fora da galeria que podíamos escutar a instalação. Também esse furo no estético, a saída do cubo branco, a passagem para o espaço público são gestos cheios de significado. Essa comunicação também pode ser pensada simbolicamente como o estabelecimento de um canal comunicante com o “estranho” (o Unheimlich freudiano) que é o resultado dos recalcamentos do histórico em nossa sociedade. A arte dá forma a esse sem forma, a essas histórias de morte e sofrimento enterradas sob a fina camada de realidade “resolução 4K” de nossa era das imagens. Nada melhor do que uma soundscape para poder apontar para além dessas imagens. Essa mistura de vozes que compõe essa obra de Escobar é como um rasgo, um fragmento (ou fotografia sonora, “sonografia”, escrita de som) daquele tempo, que penetra nosso presente em busca de ouvidos e de justiça.

A obra de Frederico Filippi, Direito de resposta (2014-2015), pode ser vista como um trabalho que cita (ou melhor, no caso, antropofagiza) disruptivamente outro monumento tradicional. Trata-se do Monumento al Descubrimiento de América, na plaza Colón, em Madrid. Esse monumento, de 1970, ainda em estilo fascista, é uma típica comemoração colonialista da conquista. Frederico retirou uma das placas metálicas desse monumento, fundiu-a e criou uma nova placa, que foi instalada junto ao monumento madrileno. Na placa lemos uma tradução abissal do original monumental: “AL FINAL DEL OCÉANO ESTABA EL ABISMO”. Esse abismo, na verdade, foi esse mesmo encontro entre os europeus e essas terras e seus povos, que foram tragados pelo movimento de colonização/invasão.

Também de Filippi, via-se na Galeria Leme sua obra Mapa (2015-2016). Como nas obras mencionadas de Lauriano (Quem não reagiu está vivo, República [democracia racial]) e Clara Ianni (Linhas), aqui também vemos a forte metáfora do mapa e da cartografia em ação. Na verdade, nessas obras temos anticartografias: o trabalho de redesenhar identidades e fronteiras. Se no mapa “Terra Brasilis” os indígenas eram representados como futuros escravos em potencial, Filippi vai inscrevê-los sobre um fundo negro no qual eles parecem se fundir. O mapa se transforma em Atlas Mnemosyne, para citar a famosa obra de Aby Warburg. Não que aqui encontremos, como no trabalho do historiador da arte, uma coleção de imagens organizadas em uma curadoria fotográfica do ponto de vista de princípios analógicos. Mas não podemos esquecer que um dos principais fios que conduziam a construção das pranchas de Warburg também era a história e a memória da violência. Daí podermos falar de um atlas da memória do apagamento. Daí ser-nos autorizado pensar nessa obra de Filippi em uma estética precária que traduz o mapa, instrumento de dominação, em espaço (crítico) de memória.

Também trabalhando com linhas sutis, em uma estética do precário e executando uma tradução por assim dizer engajada, Clara Ianni em seu trabalho na Totemonumento, Reparação (2015-2016), vai retomar o tema frequente nas sociedades pós-ditatorias da América Latina (e não só) da busca de reparação das feridas e mortes provocadas pelos agentes dos governos. Seria possível algum reparo após torturas e desaparecimentos? Como contabilizar as dores, as perdas e os traumas? Falar em reparação após esses estados de exceção muitas vezes se dá em um quadro de imposição de apaziguamentos que quase nunca são satisfatórios. Mas a luta pelo reparo se dá e é absolutamente justa. Ela se dá dentro da aporia, na lógica do double bind, o mandamento contraditório do dever e da desistência. Daí a “estética do precário” e do mínimo que marca a obra de Clara Ianni e em particular essa série que traduz um manual de antropologia forense na chave da “reparação”, da cura do incurável. Trauma, em grego quer dizer ferida. As feridas da ditadura são impossíveis de serem fechadas. O Estado brasileiro, apesar da Comissão de Anistia e do relatório da Comissão Nacional da Verdade, pouco fez em termos de reparo, sobretudo se pensarmos em termos da verdade e da justiça. Os artistas atuam como espécies de curandeiros que fazem sua dança de traços e corpos propelidos pela perpetuação das injustiças e pela busca da impossível cura e reparação.

Regina Parra participou dessa exposição com duas obras, um vídeo e uma fotografia. Seu tema muitas vezes são os deslocamentos, as travessias de fronteira e suas dissoluções. O vídeo Sobre la marcha II (o sobrevivente) apresenta imagens que se tornaram lamentavelmente comuns hoje: vemos um barco com pessoas que tentam emigrar em fuga desesperada de seus países e acabam à deriva, em uma errância involuntária, flutuando sobre um chão abismal que muitas vezes os traga. Regina sobrepõe a essas imagens a opinião de frequentadores da internet provocando um mal-estar no espectador. A foto Zona de espera (o fotógrafo) (2014) apresenta uma fotografia de fotografia. Trata-se das fotos feitas por um fotógrafo imigrante em São Paulo, que apresenta alguns de seus trabalhos sobre a palma de sua mão. A “zona de espera”, do título, pode ser interpretada tanto como a espera pelas imagens fotográficas como uma alusão a essa zona de transição, na qual as pessoas perdem, novamente, o chão sob seus pés, e ficam em suspensão: outra leitura possível, aliás, para a obra de Lais Myrrha que vimos acima, O tempo corre para o norte (da série Insólitos-estáveis).

As duas últimas obras a comentar de Totemonumento são justamente as duas que fazem do modo mais direto alusão ao tema do totem. O trabalho de José Carlos Martinat, Contextualizable (2016), é uma espécie de “quite ready made” (um quase ready made): uma base de madeira sobre a qual ele colocou um grande bloco de argila ainda moldável. Se juntarmos a maleabilidade da argila com o título-proposta – contextualizável – então temos um kit salva-vidas para fazermos nossos memoriais, monumentos – e antimonumentos. A brincadeira de Martinat é muito bem-vinda e introduz na exposição um momento metarreflexivo essencial. A maleabilidade da argila faz lembrar de uma antiga metáfora para a memória: na Antiguidade considerava-se nossa memória como uma espécie de tábua de cera. Para Aristóteles, como lemos em seu De memoria et reminiscentia, cada pessoa possuiria uma determinada consistência dessa superfície mnemônica, o que determina a sua capacidade de reter mais ou menos informações:

 

em certas pessoas devido à incapacidade ou idade, a memória não se dá mesmo sob um forte estímulo, como se o estímulo ou selo fosse aplicado à água que corre; enquanto em outras, devido ao desgaste, como em paredes antigas de prédios, ou à dureza da superfície de apoio, a impressão não penetra. Daí os muito novos e os muito velhos terem memória fraca; eles estão no estado de fluxo: o jovem devido ao seu crescimento, o idoso, devido à sua decadência. Pelo mesmo motivo, nem o muito veloz, nem o muito vagaroso parece ter boa memória, os primeiros são mais úmidos do que deveriam ser e os últimos mais duros; nos primeiros a imagem não permanece na alma, e nos últimos ela não deixa nenhuma impressão. (450b 1-10) [L1]

 

No Teeteto de Platão, Sócrates, já estabelecendo essa relação entre a escritura e a memória, falava de um

 

cunho de cera; numas pessoas, maior; noutras, menor; nalguns casos, de cera limpa; noutros com impurezas, ou mais dura ou mais úmida, conforme o tipo, senão mesmo de boa consistência, como é preciso que seja. [...] Diremos, pois, que se trata de uma dádiva de Mnemenosine, mãe das Musas, e que sempre que queremos lembrar-nos de algo visto ou ouvido, ou mesmo pensado, calcamos a cera mole sobre nossas sensações ou pensamentos e nela os gravamos em relevo, como se dá com os sinetes dos anéis. Do que fica impresso temos a lembrança e conhecimento enquanto persiste a imagem; o que se apaga ou não pôde ser impresso, esquecemos e ignoramos (191 c d; Cf. 194 c- 195 a).

 

Martinat reatualiza essas metáforas da memória com seu bloco de argila. Em uma era de velocidades e fluxos intensos, quando a memória cada vez mais é legada ao mega-arquivo da web, retomar essa metáfora, traduzindo-a na materialidade plástica da argila é uma espécie de memento quanto ao fato de que a memória é um processo de construção e não algo dado, como essas passagens de Aristóteles e Platão podem sugerir. É nas políticas da recordação e da memória que forjamos o que e como se lembra.

Por fim algumas palavras sobre a obra que deu nome à curadoria de Isabella Rjeille. Trata-se de Tiradentes: totem-monumento ao preso político (1970), de Cildo Meireles. Na exposição temos apenas a apresentação de uma foto que lembrou essa obra performática, realizada no contexto da exposição Do Corpo à Terra, com curadoria de Frederico Morais, em Belo Horizonte. A foto retrata o “day after” do “banquete totêmico” no qual Cildo queimou ao ar livre dez galinhas que se encontravam amarradas a um mastro-totem. Vemos apenas o mastro, cinzas e penas. Ao lado, uma prancha com um texto assinado pelo próprio artista explica o que foi a performance e conta que o fotógrafo Luiz Alphonsus a documentou. A fotografia é o agente decisivo da memória da efêmera performance, por mais chocante que essa seja. A ação, como Isabella Rjeille o apresenta muito bem no texto que acompanhou a exposição, era uma “crítica brutal, no calor da hora, ao cinismo do poder do Estado sobre as narrativas históricas”. Afinal, o dia da mise en scène era véspera do feriado de Tiradentes, Cildo estava em plena Minas Gerais e a propaganda política da ditadura procurava se apropriar daquela figura histórica e mítica, para fins de enaltecimento de um governo bárbaro que torturava e assassinava sua população. Por outro lado, é evidente que o galinicídio incomoda – e o texto de Cildo parte dessa questão. Ele conta que durante a queima das galinhas um senhor se aproximou dele e se apresentou como sendo o “presidente da seção de Minas Gerais da Sociedade Protetora dos Animais”. O artista comenta que ficou aliviado, pois esse senhor aprovou a ação e narra: “Eu pensei: ‘Legal! Não estou sozinho nessa loucura’”. E ele apresenta a tese que sustentava a obra: “O trabalho perguntava: não é uma hipocrisia você perguntar sobre queima de galinhas quando você está esquartejando jovens por causa de ideias e tentando cooptar um símbolo que, exatamente, morreu esquartejado pelo poder? Quer dizer, havia uma inversão de procedimentos”. É como se com a performance, novamente, com essa citação, essa cópia em escala menor, queima de galinhas, a realidade do terror de Estado fosse denunciada. E foi. No dia seguinte à ação em um almoço de gala dos políticos no Palácio das Artes, onde ocorria a exposição, um deputado criticou explicitamente a obra de Cildo. A matéria do jornalista Morgan Motta, que Cildo cita, encerra seu relato desse almoço contando um fato que, para Cildo, significa “o símbolo da hipocrisia que reinava no Brasil”: “terminados os discursos, foi servido o almoço: frango ao molho pardo”. É interessante que Cildo veja aí nesse prato um paroxismo da hipocrisia. Se comemos frango ao molho pardo, por que se revoltar com a queima das galinhas? O artista tem lá suas razões... Mas o que vemos aqui é um autêntico “desvio pelo biopolítico”. Muito bem-vindo, aliás. A obra de Cildo é uma reflexão sobre o valor da vida, apesar dele afirmar que sua obra teria como matéria-prima a morte, que “sempre por metáfora, ela acaba voltando à vida”. A arte é prosopopeia, a arte de dar vida ao inanimado e morto. Sua obra ritual teve a morte (de galinhas) em seu centro, voltada para convocar os que estavam sendo mortos – seres humanos. Seu ato sacrificial quis ser o avesso da política sacrificial que mata os seus “inimigos” como tática de uma política do terror. Hoje essa obra decerto seria impossível, pois a humanidade andou a passos largos no trabalho de estender o manto da compaixão sobre toda a vida, mas ela, em sua capacidade de provocação, ainda nos incomoda e faz pensar sobre o que foram aqueles tempos sombrios no início dos anos 1970 no Brasil.

Diante dessa nova cena das artes brasileiras, só nos resta especular sobre as suas potencialidades de renovação da força que marca nossa produção artística contemporânea. Essa novíssima geração, nascida em sua maioria já em plena era da revolução cibernética e da internet, redescobriu a memória para além de suas próteses. Eles vão ao encontro desses temas como em uma resposta que dão àqueles que, do passado (que só existe no presente), voltam-se para nós com um pedido de que estejamos abertos para as suas imagens rasuradas e vozes caladas. Essas obras são constructos que nos permitem vislumbrar o nosso mundo de forma crítica, aprimorar a nossa linguagem e, sobretudo, treinar a nossa sensibilidade para os enfrentamentos (bio)políticos de nosso cotidiano. Sua estética da precariedade coloca em seu centro uma visão do ser humano como um ser frágil, marcado por suas faltas, vazios e buscas. Ao invés de ir ao encontro de heróis, ela molda novas sensibilidades a partir de nosso desamparo fundamental. Também nesse sentido essa arte pode ser vista como uma técnica de vida essencial para nossos dias de errância no precário e movediço campo político.

São Paulo, 05/04/2016

 

 

Mostra Totemonument, Galeria Leme, São Paulo.  Foto: Filipe Berndt

Direito de resposta, 2014-2015, Frederico Filippi,

Contextualizable 2015-2016, José Carlos Martinat

Mapa, 2015-2016, Frederico Filippi

Monumento às Bandeiras, 2015-2016, Jaime Lauriano

 

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[1] Remeto aqui às curadorias realizadas por Arantes diante do Paço das Artes, que podem ser vistas também no belo livro: Priscila Arantes, Re/escrituras da arte contemporânea: história, arquivo e mídia. Porto Alegre: Sulina, 2015. Recordo em específico da exposição Crossing [Travessias], de 2010, que contava também com a impactante obra de Alice Miceli, o vídeo 88 de 14.000, de 2004, sobre o massacre promovido pelo Khmer Vermelho na prisão S-21 do Camboja nos anos 1970.

[2] Com relação a essa exposição remeto ao ensaio de Moacir dos Anjos, “Cães sem plumas: os despossuídos na arte contemporânea brasileira”, in: Lua Nova, n. 96, São Paulo, set.-dez. 2015. (Dossiê: A Memória (Ativa) da Arte).

[3] Cf. Walter Benjamin: “Aparência e jogo formam uma polaridade estética. É sabido que Schiller deu um lugar privilegiado ao jogo em sua estética, enquanto a estética de Goethe é determinada por um interesse passional pela aparência. Essa polaridade deve encontrar lugar na definição da arte. A arte, poderia formular-se, é uma sugestão de aperfeiçoamento da natureza: uma imitação cujo interior oculto é uma demonstração. A arte é, em outras palavras, mimese aperfeiçoadora. Na mimese dormitam, dobradas estreitamente uma sobre a outra, como os cotilédones de um broto, os dois lados da arte: aparência e jogo.” W. Benjamin, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. M. Seligmann-Silva (org. e apresentação); Gabriel Valladão Silva (trad.). Porto Alegre: L&PM, 2013, p. 141. Esse texto é parte de um fragmento do espólio de Benjamin.

[4] Anatol Rosenfeld, “Introdução”, in: Entre dois mundos. Anatol Rosenfeld (seleção e notas), Jacó Guinsburg, Ruth Simis e Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva, 1967, p. 17.

[5] Vilém Flusser, Von der Freiheit des Migranten. Einsprüche gegen den Nationalismus, Bensheim: Bollman, 1994, p. 31.

[6] W. Benjamin, “Sobre o conceito da história”, in: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8a ed. revista. Sérgio Paulo Rouanet (trad.), Márcio Seligmann-Silva (revisão técnica). São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 245.

[7] Cf. Nietzsche, Unzeigemässe Betrachtungen II: Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben, in: Kritische Studienausgabe. G. Colli & M. Montinari (orgs.), München: DTV/ Berlim-Nova York: Walter de Gruyter, 1988.

[8] W. Benjamin, op. cit., pp. 244-245.

[9] Seria interessante comparar essa leitura de Lauriano das grandes obras com as ações eternizantes dos Faraós e suas pirâmides. Mas precisaríamos de mais tempo e espaço para tanto. Fica a sugestão. Para essa pesquisa os trabalhos do egiptologista Jan Assmann seriam indispensáveis. Cf., por exemplo, o seu livro Religión y memoria cultural: diez estúdios. Buenos Aires: Lilmod, 2008.

[10] Essa obra de Lauriano poderia ser posta ao lado do trabalho do artista chileno Alfredo Jaar, Untitled (Newsweek), de 1994, ano do genocídio da população tutsi em Ruanda. Também essa obra de Jaar é um trabalho quase psicanalítico de inscrição de uma memória recalcada. Jaar monta nessa obra dezessete pranchas compostas pelas dezessete capas da revista Newsweek publicadas durante o período no qual se dava o massacre na África. A obra destacava, como na segunda prancha de Lauriano, o contraste entre a realidade e a sua representação “oficial”. A suposta revista de notícias e informação passou cem dias sem noticiar que se dava naquele momento um dos genocídios mais sangrentos do século. Suas capas destacavam as fotos de estrelas do futebol e da música, lembravam o dia do desembarque aliado na França em 1944, tematizavam o mercado de ações, especulavam sobre a possibilidade de vida em Marte etc. Abaixo de cada imagem que reproduzia essas dezessete capas, o artista escreveu o que acontecia em Ruanda a cada um daqueles momentos. Novamente a arte trabalha aí como escritura a contrapelo, como revelador de imagens que estão sendo o tempo todo recalcadas, riscadas ou mesmo barradas de serem inscritas. O artista se volta para o sofrimento que a sociedade recusa a ver – a não ser sob o signo da espetacularização ou da manipulação nacionalista, como no caso dos atentados terroristas e de sua cobertura. Esse tipo de imagem espetacular cega ao invés de abrir nossos olhos para o real. A imagem de artista, pelo contrário, pode servir de ponte e acesso para o “outro” e para o real.

[11] Sobre o conceito de “imagines agens” assim como a tradição dos antimonumentos, remeto ao meu ensaio: “Antimonumentos: trabalho de memória e de resistência”, in: Trivium, ano VI, edição I, 1o. semestre 2014, pp. 41-54. Disponível em: <http://www.uva.br/trivium/edicoes/edicao-i-ano-vi/artigos-tematicos/artigo-tematico-5.pdf>. Acesso em: 24 abr. 2016.

[12] Jaime Lauriano tem uma série de obras que seguem esse mesmo princípio: mapas traçados com pemba branca sobre tecido negro de algodão. Uma dessas obras, Aculturação (2015), também estava presente na exposição Jogo de Forças, no Paço das Artes. Na exposição no Caixa Cultural São Paulo, ele também apresentou outras obras que jogavam (no sentido que vimos acima de jogo) com os símbolos pátrios. Por um lado ele apresentou duas de suas bandeiras do Brasil, refeitas por diferentes bordadeiras e tecelãs: Bandeira nacional #1 e Bandeira nacional #3 (2015). Como afirma Tomás Toledo, no texto do catálogo da exposição, assim essas mulheres criaram “sua própria interpretação da bandeira brasileira, transformando o símbolo especificado por lei em algo vernacular e múltiplo, [...] criando uma possibilidade alternativa à noção oficial de um país uníssono e massificado culturalmente, que anula as diversas formas e possibilidades de ser brasileiro”. Essa passagem para o gênero feminino também serve de ataque ao momento falocêntrico dos símbolos nacionais, bastiões de uma cultura patriarcal. O trabalho de tecer como metáfora da recordação também pode indicar que outras histórias são narradas quando a história passa a ser escrita por mulheres. Outra obra de Lauriano, que fechava o périplo por Empresa Colonial, era um vídeo, O Brasil (2014), que consiste em uma colagem de uma série de programas de propaganda do governo civil-militar da ditadura, sobretudo do início dos anos 1970. Também esses programas são marcados por uma visão unívoca do Brasil e celebram, como os filmes da era nazista na Alemanha, a unidade de um povo voltado todo ele harmonicamente (e sem diferenças internas) para a construção de um “grande futuro/país”. Daí o título em singular O Brasil indicando essa redução monocromática (ou verde-e-amarela) forçada do país, que nega as tensões e gritantes disparidades sociais. Diga-se de passagem, essa obra de Jaime Lauriano, ao lado da Brasília Broadcast de Beto Shwafaty, que comentei, contam entre as poucas obras recentes que no Brasil tematizam diretamente a ditadura de 1964-1985. Diferentemente do que se passa em outros países da América Latina, no Brasil esse tema ainda é pouco explorado. Mas tudo indica que isso está mudando por obra dessa novíssima geração. Veja-se também a exposição Totemonumento.

[13] Na exposição Cães sem plumas, uma obra extremamente eloquente também era dedicada a esse tema. Refiro-me ao trabalho de Armando Queiroz, Ymá Nhandehetama (Antigamente fomos muitos) (2009). Nela vemos a narrativa de um indígena, com o close de sua face, narrando a destruição das nações indígenas no Brasil: “Nós sempre fomos invisíveis. O povo indígena, os povos indígenas, sempre foram invisíveis para o mundo. Aquele ser humano que passa fome, que passa sede, que é massacrado, perseguido, morto lá na floresta, nas estradas, nas aldeias. Esse não existe. Para o mundo aqui fora existe aquele indígena exótico: o que usa cocar, colar, que dança, que canta. Coisa para turista ver. Mas aquele outro que está lá na aldeia, esse sofre de uma doença que é a doença de ser invisível. De desaparecer. Ele quase não é visto. Tanto para o mundo do Direito, principalmente para o mundo do Direito, como ser humano. Ele desaparece. Ele se afoga nesse mar de burocracia, no mar de teorias da academia, ele é afogado no meio das palavras. Quando a academia, os estudiosos, entendem mais de indígena, de índio, que o próprio índio. Ele é invisibilizado pela própria academia […]”. O vídeo é todo escuro, com um fundo negro. Ao final do tocante testemunho de Almires Martins, indígena guarani, ele pinta a sua cara de preto e performatiza o que diz: desaparece. Esse gesto de pintar o rosto, performatizar o desaparecimento, pode também ser interpretado na chave de um empoderamento, como vemos no famoso vídeo que documentou o discurso já histórico que  Ailton Krenak fez durante a Assembleia Constituinte (04/09/1987), no qual, ao defender os indígenas, pintou seu rosto de preto.

[14] Quanto ao artista como catador e colecionador de restos, remeto à famosa passagem de Baudelaire, que inspirou Benjamin e sua teoria do colecionador: “Aqui temos um homem – ele tem de recolher na capital o lixo do dia que passou. Tudo o que a cidade grande jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que destruiu, é reunido e registrado por ele. Compila os anais da devassidão, o cafarnaum da escória; separa as coisas, faz uma seleção inteligente; procede como um avarento com seu tesouro e se detém no entulho que, entre as maxilas da deusa indústria, vai adotar a forma de objetos úteis ou agradáveis”. Citado por Benjamin em: Benjamin, Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. José Barbosa & Hemerson Baptista (trads.). São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 78.


Periódico Permanente é a revista digital trimestral do Fórum Permanente. Seus seis primeiros números serão realizados com recursos do Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, gerido pela Funarte.

 

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