Sobre a simpatia

*Reginaldo José Horta

Numa sala de aula, em cujas paredes encontram-se estampas coloridas que mostram animais de todos os feitios, uma professora ensina aos alunos que é preciso “querer bem aos animais”, pois “eles têm direito à vida, como nós, e além disso são muito úteis”. Questionada pelas crianças, a professora explica pacientemente para elas as características de cada animal: o iaque, um boi da Ásia Central, serve de montaria e de burro de carga, além de ter um pelo muito útil para fazer perucas e uma carne que dizem ser gostosa; o texugo fornece pelo para fazer pincel; o canguru, “utilíssimo”, nos dá a carne e também o couro; da vicunha vem a lã, usada para fazer ponchos, mantas, cobertores, etc.; a zebra, além de trabalhar no circo,  tem um couro listrado que serve de forro de cadeira, de almofada e para tapete; do pinguim, do qual se aproveita até os excrementos, que são um “adubo maravilhoso”, vem o óleo feito de sua gordura… Assim, interrompida aqui e acolá pelas perguntas às vezes desconcertantes das crianças, a professora vai falando dos animais e dos benefícios que eles representam para os homens: a ótima qualidade das escovas de pelo de javali, a beleza dos agasalhos de pele de castor, a delícia que é a sopa de tartaruga, etc. etc. No fim, ciente de ter demonstrado exemplar e suficientemente à sua pequena plateia a inequívoca utilidade dos animais, a professora conclui: “Ai de nós se não fossem os animais que nos ajudam de todas as maneiras. Por isso eu digo: devemos amar os animais, e não maltratá-los de jeito nenhum. Entendeu, Ricardo?” Ao que este, de pronto, responde: “Entendi, a gente deve amar, respeitar, pelar e comer os animais, e aproveitar bem o pelo, o couro e os ossos”.

Este relato é o resumo de uma crônica de Carlos Drummond de Andrade intitulada “Da utilidade dos animais”. De forma lúdica e até bem humorada ela ilustra bem um conceito filosófico muito conhecido no campo da “ética animal”: o conceito de especismo seletivo. Trata-se, basicamente, da atitude de declarar “amar” e defender certos animais – aqueles que consideramos como sendo “de estimação” – , mas, no entanto, ser indiferente à sorte dos animais de outras espécies, como aqueles que comemos, que utilizamos em experiências científicas, que confinamos em zoológicos, que transformamos em bolsas, sapatos e casacos, enfim, todos aqueles “outros” que permanecem longe de nossos olhos e excluídos de nossa estima. O filósofo norte-americano Gary Francione se refere a essa nossa atitude como uma “esquizofrenia moral”: uma espécie de contradição entre nossa crença e consequente afirmação de que os animais são seres possuidores de interesses moralmente significativos e o modo como efetivamente os tratamos.

Na referida crônica, Drummond se vale do artifício da ficção para nos levar a uma reflexão acerca do quão contraditório é nosso discurso sobre (e nossas atitudes para com) os animais, discurso esse estranhamente capaz de conjugar vida e morte, amor e crueldade, respeito e utilidade, admiração e violência. Ainda que questões do gênero costumem ser objeto da Ética, uma disciplina eminentemente filosófica, a literatura constitui um locus privilegiado de reflexão acerca deste tema. Em forma de crônica, poema ou romance, escritores de ontem e de hoje, brasileiros e estrangeiros, lançaram desde sempre um olhar particularmente atento a essa relação entre humanos e animais, seja ressaltando os laços de companheirismo que unem uns aos outros e mostrando a cumplicidade que costura suas relações, seja problematizando o modo como nós humanos encaramos os animais ou mesmo colocando em cheque nossa crença de que existe um limite claro e preciso que nos separa deles.

A título de exemplo, poderíamos citar o papel desempenhado pela cachorra Baleia no romance Vidas secas, de Graciliano Ramos (de quem já se disse ser a personagem mais humana da estória); o cão Quincas Borba, companheiro fiel de seu dono homônimo no conhecido livro de Machado; os gatos homenageados por Baudelaire em vários poemas de seu As flores do mal; os inúmeros animais que povoam os contos e romances de Guimarães Rosa; e Argos, o velho cão galgo de Ulisses, que mereceu de Homero alguns dos mais belos versos da Odisséia: “Esquecido agora, na ausência do dono, diante do portal do palácio, Argos permanecia a vigiar, quase cego, coberto de sarna e pulgas. Ele reconheceu Ulisses no homem que chegava e, movendo o rabo, baixou as duas orelhas: faltavam-lhe forças para correr em direção ao dono. Ulisses o viu, voltou a cabeça e, tocado por sua aparência, verteu uma lágrima…” (Canto XVII, 292).

Penso que a literatura, para além do prazer que nos proporciona, possui a notável propriedade de atualizar aquela qualidade da natureza humana a que damos o singelo nome de simpatia. Esta qualidade, que pode ser entendida, basicamente, como a propensão que temos de partilhar das emoções de outrem, por mais diferentes que sejam das nossas, goza de um locus privilegiado na literatura na medida em que esta nos faculta a possibilidade de acesso ao ser do outro, às suas emoções, seus pensamentos, suas crenças e desejos, enfim, à sua vida interior.

Consideremos, por exemplo, o caso do personagem Gregor Samsa, herói do romance A metamorfose, de Kafka. A estranha história do homem que, ao acordar um dia pela manhã, vê-se transformado num inseto monstruoso é tão inverossímil quanto fascinante. Grande parte de seu fascínio reside na perplexidade que sentimos ao lermos essa história, perplexidade que me parece semelhante a do próprio Gregor Samsa quando, ao contemplar a si mesmo metamorfoseado em inseto, se pergunta: “O que aconteceu comigo?”, para constatar logo em seguida a verdade terrível de que “não se trata de um sonho”. Esta experiência advinda da leitura de Kafka me revela que sou capaz de me colocar no lugar desse estranho herói, de me transportar – ao menos em imaginação – para a situação em que ele se encontra e, para além de todo o nojo e de todo o asco que me suscita a minuciosa descrição kafkiana daquele estranho corpo de inseto, simpatizar com ele e dele me compadecer, fazendo meus os seus sofrimentos, tornando minhas as suas dores.

Se a literatura nos permite pensar ou imaginar a existência de indivíduos e seres que nunca existiram e nos fazer simpatizar com eles, não seríamos então capazes de simpatizar com aqueles que participam conosco do substrato da vida, mesmo quando esses são muito diferentes de nós? Aliás, um princípio basilar da Ética é a obrigação de respeito e responsabilidade que temos para com o mais dessemelhante, para com o absolutamente Outro. Se não é assim, ela, a Ética, permanece simplesmente humana e, portanto, eternamente narcisista.

 

*

Meu nome é Reginaldo José Horta. Tenho especial orgulho de trazer no meu sobrenome o nome do meu pai.

Nasci na pequena cidade de Jeceaba, no interior de Minas. Ainda muito cedo, aos 14 anos, entrei para o Seminário, aos pés da Serra do Caraça. Ali iniciei minha formação religiosa e intelectual. Em 2000 entrei para o curso de Filosofia, onde descobri minha verdadeira vocação (que não era de padre). A leitura de Spinoza e Nietzsche me libertou de meus temores e preconceitos religiosos. Deixei o Seminário, me tornei professor, me casei.

Há alguns anos minha esposa e eu nos tornamos vegetarianos por respeito aos animais. Minhas pesquisas sobre Ética Aplicada me levaram a abordar a questão dos animais na Filosofia, o que deu origem à minha dissertação de mestrado defendida em 2015 e recentemente publicada em livro.

Vivo em Belo Horizonte e divido meu tempo entre minhas pesquisas, minhas aulas, meus livros e meus amigos, humanos e não humanos.